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A IGREJA E A DITADURA MILITAR

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

 

Este artigo foi publicado originalmente, “A Igreja e a Ditadura Militar”, no livro: ASSIS, João Marcus Figueiredo; RODRIGUES, Denise dos Santos (Org.). Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

 

Ivo Lesbaupin

A Igreja católica no Brasil teve uma posição bastante corajosa frente à ditadura militar instalada em 1964, mas esta posição não foi tomada desde o início, foi um processo gradual, precedido de vários episódios. E tal posição só pode ser explicada pelos antecedentes, no decorrer dos anos 50 e início dos 60.

Os antecedentes

Até os anos 50, a Igreja no Brasil era bastante semelhante à Igreja de outros países: uma atuação religiosa tradicional, pouco presente na questão social, marcada pelo entendimento com as classes dominantes e, no campo, pela boa convivência com a oligarquia rural. A relação com os governos era caracterizada pela busca da afirmação dos privilégios da instituição católica, no que dizia respeito às escolas e às rádios católicas, e à defesa de seus princípios morais.

No entanto, no decorrer desta década, em razão da agitação no meio rural, motivada pelas duras condições de vida e de trabalho dos agricultores, surgem pouco a pouco pronunciamentos episcopais críticos, especialmente quanto à questão do campo. Destaca-se neste período a figura de D. Hélder Câmara, bispo auxiliar do Rio de Janeiro que foi o fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1952. D. Hélder foi seu secretário-executivo nos doze primeiros anos e reuniu em torno de si um grupo de bispos comprometidos com a renovação da Igreja. D. Hélder recebeu um grande apoio do Núncio Apostólico do Vaticano de 1954 a 1964, Monsenhor Armando Lombardi. Durante esta década foram nomeados mais de cem bispos e a influência de D. Hélder se fez sentir na sua escolha.

O contexto social vai ter um papel importante aqui: é um período de forte efervescência, particularmente no campo. Surgem em 1955 as Ligas Camponesas no Nordeste, movimento que vai se espalhar por várias regiões do país. Também o movimento operário e sindical tem um grande impulso e pouco a pouco as centrais sindicais se tornam mais poderosas. Cresce o movimento de educação popular, de um lado pelo MEB (Movimento de Educação de Base), que tem origem na Igreja em 1961 e inspiração de enfrentamento dos comunistas no campo. Mas, na prática, será um movimento de conscientização e organização dos camponeses e aproximará cristãos e comunistas. Por outro lado, é o momento em que aparece Paulo Freire e seu método revolucionário de alfabetização. Ele se baseia numa pedagogia do oprimido que terá ampla divulgação, tanto entre os estudantes quanto entre os setores mais comprometidos da Igreja.

Finalmente, a vitória da Revolução Cubana no início de 1959 foi um acontecimento com muita repercussão nas esquerdas e nos movimentos sociais do continente, inclusive do Brasil: ela significava que a mudança era possível, que a ruptura com a dominação imperialista dos Estados Unidos era viável. Ela gerou uma grande esperança no meio dos cristãos de esquerda.

O outro fator importante foi a Ação Católica, em especial os movimentos juvenis, a JUC (Juventude Universitária Católica) e a JEC (Juventude Estudantil Católica). Estes movimentos tinham um perfil marcadamente sacramental e litúrgico até os anos 50, mas na virada de 1959 para 1960, deram uma guinada para o engajamento social. Vários militantes de JUC foram atuar no MEB, junto aos camponeses, tomando contato, pela primeira vez, com suas condições de vida.

É indubitável a influência do catolicismo francês sobre esta parte da Igreja mais sensível à questão social: a experiência dos padres operários, os pensadores leigos Jacques Maritain, Emanuel Mounier, o Padre Lebret – sociólogo, voltado para os problemas do Terceiro Mundo -, os teólogos Yves Congar, Marie-Dominique Chenu, Teilhard de Chardin, a revista Esprit. Tanto a vivência prática quanto as reflexões teóricas dos católicos franceses vão repercutir sobre os jovens cristãos, uma parte do clero e dos bispos brasileiros.

Completa este quadro a atuação do Papa João XXIII, elevado ao pontificado em 1958 e que revolucionou a Igreja com a convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Ele será responsável por um empenho cada vez maior dos bispos latino-americanos pelos pobres do continente, graças a duas cartas escritas diretamente a eles, uma em 1958 e outra em 1961. Por outro lado, nos cinco anos em que governou a Igreja, lançou duas encíclicas sociais, Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963). O Concílio, que durou quatro anos – três meses por ano – teve um forte poder de mudança. Ele está na raiz de profundas transformações ocorridas na Igreja tanto a nível internacional quanto no Brasil. Vários bispos deram início às comunidades de base em suas dioceses, a partir da inspiração do Concílio.

Em conseqüência do Concílio, outro evento muito importante para a Igreja latino-americana foi a II Conferência do Episcopado Latino-Americano em Medellín (1968). Este encontro, pensado originalmente para adaptar a Igreja do continente ao Concílio foi muito mais do que isso. Especialmente em dois dos dezesseis documentos, o Documento sobre a Justiça e o Documento sobre a Paz, Medellín dá início a uma nova reflexão teológica, dando lugar central ao pobre e àquilo que passou a se chamar o “pecado estrutural”. É uma primeira expressão daquela que vai se chamar, três anos depois, Teologia da Libertação[1]. No Documento sobre a Justiça, os bispos afirmam:

“ (…) É o  mesmo Deus que, na plenitude dos tempos, envia seu Filho  para que feito carne, venha libertar todos os homens, de  todas as escravidões a que o pecado os sujeita: a fome, a  miséria, a opressão e a ignorância, numa palavra, a injustiça que tem sua origem no egoísmo humano (Jo 8, 32-34). (…)”

Este quadro evidencia a existência de um setor renovador na Igreja do Brasil, tanto na cúpula – a direção da CNBB – quanto no seio do clero e em algumas bases. Isto não deve nos fazer perder de vista que a maioria da Igreja, a maioria do episcopado, é conservadora. Assim, quando a agitação social cresce e os cristãos leigos se envolvem diretamente na ação política, estes setores mais conservadores se alarmam. A mídia, dominada pelas elites, desenvolve uma campanha de incriminação do governo populista de João Goulart (1961-1964), acusando estes movimentos de serem pró-comunistas e criando a impressão de que o país caminhava rapidamente para o comunismo. Duas campanhas católicas, desencadeadas poucos meses antes do golpe, foram cruciais para criar um clima favorável aos golpistas: a Cruzada do Rosário em Família e, em seguida, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Ambas eram caracterizadas por um forte teor anti-comunista e de desmoralização daqueles que se mobilizavam exigindo justiça social.

A Igreja e o golpe militar

Quando o golpe militar foi desencadeado, uma parte da Igreja sentiu-se como se suas preces tivessem sido ouvidas. Este é praticamente o teor do documento episcopal emitido dois meses depois do golpe:

“(…) Atendendo à geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa terra. (…) De uma a outra extremidade da pátria, transborda dos corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus, pelo êxito incruento de uma revolução armada. (…)”

O documento contém também críticas ao novo regime, rejeita acusações contra a Igreja e movimentos como a Ação Católica e o MEB, exige o respeito aos direitos humanos, especialmente o direito de defesa e insiste na busca da justiça social. Mas a marca fundamental desta primeira declaração oficial do episcopado é de aprovação.

Na verdade, no mesmo momento em que a direita toma o poder do Estado, no interior da Igreja também a direita assume a direção. D. Carlos Carmelo Mota, que era arcebispo de São Paulo, é transferido para uma diocese do interior, Aparecida, e D. Hélder Câmara é transferido para Recife, onde pensavam que ele incomodaria menos. Neste mesmo ano, é eleito presidente da CNBB D. Agnello Rossi, que se torna Arcebispo de São Paulo e secretário-geral D. José Gonçalves, outro conservador. Esta direção vai conviver pacificamente com o regime ditatorial.

No entanto, se há calmaria na cúpula, surgem e crescem conflitos nas bases. Militantes e padres assistentes de movimentos de Ação Católica, particularmente JUC, JEC e JOC, além da ACO, vão ser presos ou ameaçados nestes primeiros anos do golpe (1964-1968). Em vários lugares do país, padres serão alvo da repressão por proferirem sermões críticos à ditadura, e os estrangeiros sofrerão processos de expulsão. Vários bispos entram em conflito com autoridades militares em razão da repressão: os casos mais conhecidos foram os de Volta Redonda, cujo bispo é D. Waldir Calheiros e de Recife, que tem por bispo D. Hélder Câmara. As manifestações contra a ditadura se desenvolveram sobretudo no movimento estudantil. Foi a época das passeatas, sempre reprimidas pela polícia. Em 1968, porém, numa destas manifestações no Rio de Janeiro, um estudante foi morto. Formou-se um cortejo de mais de vinte mil pessoas. Em reação à repressão, setores da Igreja apoiaram os estudantes. Poucos dias depois, em missa pelo jovem morto, a cavalaria investiu sobre padres, estudantes e outros participantes. O protesto culminou na passeata dos 100.000, em junho, a maior manifestação de massa até então.

O que se observou neste primeiro período foi que mesmo bispos conservadores foram pouco a pouco levados a apoiar seus colegas em confronto com os responsáveis pela repressão: o discurso da caserna contra membros do episcopado levou a que o espírito de corpo falasse mais alto. Governantes ou simples autoridades militares se arvoraram em professores de teologia, querendo ensinar à Igreja qual era sua missão, onde deveriam atuar e onde não deveriam estar. O episcopado reagiu. Os conflitos eram localizados, mas levavam a reações mais amplas.

O endurecimento do regime

O protesto crescente na sociedade civil contra o regime ditatorial levou os generais a endurecer: perceberam que só manteriam o poder pela força, calando a oposição. A 13 de dezembro de 1968, decretaram o Ato Institucional no. 5, que fechava o Congresso e suspendia as liberdades constitucionais. Daí por diante, a tortura, que já era utilizada contra prisioneiros políticos, mas esporadicamente, se tornou uma prática sistemática nos interrogatórios.

O número de prisões cresce enormemente, e começam a ocorrer casos de mortes sob tortura ou de desaparecimento. E assassinatos também: no caso da Igreja, começou com um auxiliar de D. Hélder, o padre Henrique Pereira Neto, que trabalhava com a juventude. Em dez anos (1968-1978), sete padres ou seminaristas foram assassinados. Houve inúmeras outras formas de repressão, sendo uma das mais comuns os ataques difamatórios e, muitas vezes, a imprensa se prestou a esta forma de ataque. Dez padres estrangeiros foram expulsos do país. Vinte e nove bispos foram atingidos de uma ou outra maneira. Nenhum deles chegou a ser levado à prisão, mas alguns tiveram suas casas invadidas ou metralhadas (caso de D. Hélder), documentos expropriados, um bispo foi seqüestrado (D. Adriano Hipólito). Casas e prédios pertencentes a entidades ligadas à Igreja foram invadidos, publicações foram apreendidas, às vezes na gráfica.

Em novembro de 1969, sete religiosos dominicanos são presos e torturados, por ligação com a organização revolucionária ALN (Ação Libertadora Nacional), dirigida por Carlos Marighella). Marighella é morto pela polícia dois dias depois. A mídia desencadeia ampla campanha contra “a Igreja terrorista”, “os padres comunistas”, os “traidores do Evangelho”. A Ordem dos Dominicanos, particularmente visada nestes ataques, no entanto, apoia seus membros. O caso tem ampla repercussão no exterior. Três meses depois, um dos frades, frei Tito de Alencar Lima, é novamente levado para interrogatório, na OBAN (Operação Bandeirantes) e barbaramente torturado. Depois de três dias, para interromper as torturas, frei Tito tenta o suicídio. É levado para um hospital militar e consegue se recuperar. Seu relato sobre estes dias acaba saindo da prisão e é publicado em muitos lugares no Brasil e no exterior[2]. Frei Tito foi solto junto com outros prisioneiros políticos quando do sequestro do embaixador suíço. Depois de passar pelo Chile, ele se estabelece na França onde, como seqüela psicológica das torturas, vem a se suicidar, em 1974. É considerado um mártir da Igreja.

A postura favorável à ditadura, presente logo após o golpe e nos primeiros anos do regime, cedeu o lugar a posições mais críticas. Em 1968, já é eleito um secretário-geral da CNBB mais aberto, D. Aloísio Lorscheider. Em 1970, na Assembléia Geral dos Bispos, o documento final denuncia as torturas, mas é escrito de modo a não aumentar as tensões com o governo. Mas, até este momento, predominava na direção da Igreja uma preocupação de manter o diálogo com os militares, de não romper, não entrar em conflito direto.

A mudança de postura vai ocorrer em outubro de 1970, impulsionada pelo Papa Paulo VI. Um dia depois de um duro discurso contra a tortura no mundo – interpretado pela mídia internacional como sendo voltado para o Brasil -, o Papa promoveu o Arcebispo de São Paulo, D. Agnelo Rossi, a uma Congregação do Vaticano e nomeou D. Paulo Evaristo Arns para assumir o seu lugar. Foi a maneira diplomática encontrada pelo Vaticano para afastar D. Agnelo de São Paulo – um dos lugares onde a repressão era mais virulenta – e da direção da CNBB. D. Agnelo era considerado por muitos como um bispo pouco firme frente ao regime militar.

Em pouco tempo, D. Paulo mostrou a que veio. Três meses depois de assumir a Arquidiocese, um padre e uma assistente social foram presos. O bispo foi avisado e imediatamente se apresentou ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), para onde eles tinham sido levados, e pode vê-los com marcas de tortura no corpo. Ele mandou publicar, no domingo seguinte, em todas as igrejas da Arquidiocese, um sermão onde denunciava as torturas e fazia um contundente pronunciamento contra o caráter ditatorial do regime. A postura mudava radicalmente: em vez da busca de conversa, a denúncia; em vez do segredo, a publicidade.

A atitude de D. Paulo provocou uma profunda mudança na maneira de a Igreja agir, a partir de então. Pouco a pouco, começaram a aparecer declarações públicas de bispos e de conjuntos de bispos denunciando os atentados aos direitos humanos, não apenas contra membros da Igreja mas contra qualquer pessoa, e exigindo a volta à democracia. O primeiro documento neste sentido é do episcopado do estado de São Paulo, “Testemunho de Paz”, de 1972.

“(…) Não é lícito utilizar no interrogatório de pessoas suspeitas, com o fim de obter confissões, revelações ou delação de outros, métodos de tortura física, psíquica ou moral, sobretudo quando levados até a mutilação, quebra da saúde e até a morte, como tem acontecido. (…) Ouçam os responsáveis por essas ações: ‘Eis que a voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra’ (Gen 4, 10). (…)”

Em 1971, D. Pedro Casaldáliga, um bispo de origem espanhola, recém-nomeado para a Prelazia de S. Félix do Araguaia, inaugura uma nova maneira de escrever carta pastoral, com a publicação de “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. O próprio título da Carta Pastoral já aponta o adversário desta Igreja: o latifúndio. O texto é dividido em duas partes: na primeira, apresenta uma análise da realidade social da prelazia, relata o que tem sido feito e qual a proposta de ação; a segunda é uma documentação sobre todos os grandes proprietários de terra e empresas da região (com nome, endereço e telefone) e relatos testemunhais de casos de exploração de posseiros e trabalhadores da região por estas empresas.

A preocupação da Igreja com a situação dos povos indígenas leva à criação, em 1972, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgão vinculado à CNBB. Constituído por missionários e bispos vinculados a este trabalho pastoral, o CIMI vai ter um papel muito importante durante o período ditatorial, posto que a posição do regime militar é de que “os indígenas não podem impedir o progresso”. Com a sua concepção desenvolvimentista e expansionista, apoiando grandes projetos agropecuários no Centro-Oeste e na Amazônia, as terras e os povos indígenas não tinham lugar enquanto tais no projeto da ditadura. O CIMI contribuirá para a auto-organização e a auto-defesa dos povos indígenas.

1973 foi um ano rico em publicações. Comemorando os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em três regiões/realidades sociais se organizaram e vieram a público os seguintes documentos: Eu ouvi os clamores de meu povo – Documento de bispos e superiores religiosos do Nordeste (assinado por 14 bispos e 4 provinciais); Marginalização de um povo – o grito das Igrejas – Documento de bispos do Centro-Oeste (assinado por 6 bispos); e Y-Juca-Pirama – O índio: aquele que deve morrer  – Documento de Urgência de bispos e missionários (assinado por 6 bispos e 6 missionários). Estes textos marcaram a história da Igreja do Brasil durante a ditadura: eles são, em primeiro lugar, uma denúncia das condições de vida do povo, mas também apontam e analisam a causa desta situação – que estaria no capitalismo, sustentado pela ditadura militar – e conclamam à ação. O Documento do Centro-Oeste inovava em mais um elemento: o texto foi escrito em linguagem simples, cheio de imagens, para ser acessível também aos setores populares. Concluindo o documento, dizem os autores:

“(…) É preciso vencer o capitalismo. É ele o mal maior, o pecado acumulado, a raiz estragada, a árvore que produz esses frutos que nós conhecemos: a pobreza, a fome, a doença, a morte da grande maioria. (…)”

Em 1975, surge a Comissão Pastoral da Terra (CPT), para ajudar a organizar e a defender os trabalhadores rurais, eles também vítimas da política agrária e agrícola da ditadura. O apoio aos grandes projetos agropecuários deixava posseiros e agricultores à mercê dos interesses dos grandes proprietários – desejosos de suas terras e de mão-de-obra barata. Polícia e Judiciário no campo colocavam-se a serviço dos grandes. Os pequenos proprietários e demais agricultores não tinham seus direitos respeitados. A CPT foi um grande apoio para sua luta. O caderno Conflitos no Campo, publicado anualmente, é o mais completo levantamento dos conflitos envolvendo os trabalhadores rurais no Brasil.

1976 talvez tenha sido o ano mais pesado para a Igreja: neste ano, dois padres foram mortos – o padre João Bosco Penido Burnier, assassinado ao lado de D. Pedro Casaldáliga, em S. Félix do Araguaia – e o padre salesiano Rodolfo Lukenbein, missionário, e um índio, Simão, em Merure, Mato Grosso; além disso, um bispo, D. Adriano Hipólito, de Nova Iguaçu, foi seqüestrado, deixado nu e pintado de vermelho à noite, num lugar afastado; na mesma noite, seu carro, vazio, foi explodido em frente à sede da CNBB, no Rio de Janeiro. Os fatos geraram forte reação por parte dos bispos, inclusive um documento, Comunicação pastoral ao Povo de Deus, que analisa os fatos e faz uma longa reflexão teológica sobre o papel da Igreja.

Por que a repressão se abate sobre certos setores da Igreja, sobre grupos de leigos, sobre alguns padres, irmãs, bispos? Por causa de sua postura ativa em defesa dos direitos humanos, dos pobres, dos indígenas, dos trabalhadores, dos posseiros, dos oprimidos. A CNBB, a partir de 1971, tendo à sua frente D. Aloísio Lorscheider, presidente, e D. Ivo Lorscheiter, secretário-geral[3], assume uma posição firme pelos direitos dos presos políticos, contra a perseguição, a tortura.

Na Assembléia Geral do Episcopado em 1977, os bispos aprovam um documento, “Exigências Cristãs de uma Ordem Política”, crítico à ditadura, cuja novidade consiste em ter sido assinado pelo conjunto dos bispos. Até então, já tinham sido lançados outros documentos, alguns mais críticos do que este, mas eram assumidos apenas por parte do episcopado.

Em 1979, outro atentado é cometido pelos militares contra D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu. Explodiram uma bomba embaixo do altar-mor da catedral da diocese. Em reação a este ato, dez dias depois, dez mil pessoas participaram de uma procissão em desagravo a D. Adriano.

O episcopado continuou a publicar documentos coletivos sobre questões sociais nos anos seguintes, que foram discutidos e aprovados por ocasião de cada Assembléia Geral da CNBB. Em 1980, o documento se intitulava “Igreja e problemas da terra”, onde se denunciavam a concentração da propriedade da terra no Brasil, as condições de vida e a exploração dos trabalhadores do campo, a violência exercida contra eles e o modelo político a serviço da grande empresa.

“A responsabilidade maior cabe aos que montam e mantêm, no Brasil, um sistema de vida e trabalho que enriquece uns poucos às custas da pobreza ou da miséria da maioria. (…) O modelo de desenvolvimento adotado favorece o lucro ilimitado dos grandes grupos econômicos.” (CNBB, 1980, pars. 35-36).

O texto faz uma distinção, que se tornou paradigmática, entre “terra de exploração” e “terra de trabalho”.

“Terra de exploração é a terra de que o capital se apropria para crescer continuamente, para gerar sempre novos e crescentes lucros. (…) Terra de trabalho é a terra possuída por quem nela trabalha.” (pars. 84-85).

Em 1982, foi a vez de “Solo urbano e ação pastoral”, onde novamente, a partir da situação das cidades, se denunciava o sistema vigente:

“A disparidade das condições sócio-econômicas determina a disparidade de condições de posse e uso do solo urbano. É muito difícil para as populações carentes tornar realidade seu direito à moradia, uma vez que vivem na permanente insegurança das remoções, dos desmoronamentos e inundações, do medo do desemprego, na angústia pelos aumentos de preços e de aluguéis.” (CNBB, 1982, par. 89)

“Aqui tocamos no ponto mais sensível da questão. Uma larga experiência social e pastoral nos leva à convicção de que os obstáculos a uma solução humana dos problemas relacionados com o uso e posse do solo urbano provém radicalmente do nível político, ou seja, de uma opção contrária aos legítimos interesses do povo.” (par. 95)

Em 1984, a preocupação se voltou para o Nordeste, motivada pela grande seca do ano anterior: “Nordeste: desafio à missão da Igreja no Brasil”. Aqui também, o episcopado aponta a responsabilidade:

“As causas da precariedade da situação do nordeste devem ser procuradas, antes de mais nada, na história sócio-econômico-política do Brasil, no contexto da economia mundial. Portanto, não são o resultado da fatalidade, do destino, da natureza, mas o resultado da ação ou omissão política dos homens e da forma através da qual se apropriam e usam dos recursos naturais e estabelecem relações entre si. Neste sentido, o seco e pobre Nordeste é, sobretudo, uma produção política.” (CNBB, 1984, par. 24)

Falamos até agora de posicionamento dos bispos, da CNBB, mas é preciso mostrar o que está acontecendo nas bases da Igreja, onde o mais importante é o surgimento e o crescimento das comunidades eclesiais de base (CEBs). As CEBs nascem do movimento de renovação da Igreja que era forte no início dos anos 60. Havia uma crítica, que não era recente, à pastoral baseada nas paróquias, e um dos principais elementos desta crítica era o fato de que a paróquia não formava comunidade. Foi-se formulando a proposta de comunidades de base, onde os fiéis tivessem um papel ativo, como leigos, e pudessem se conhecer. O Concílio Vaticano II veio dar um forte impulso a este movimento de renovação. O Plano de Pastoral de Conjunto (PPC) feito pelos bispos brasileiros ao final do Concílio, e divulgado em 1966, fala pela primeira vez nestas comunidades.

Em livro publicado em 1967, Comunidade eclesial de base: uma opção pastoral decisiva, o teólogo Raimundo Caramuru de Barros relata a experiência de vinte comunidades no Brasil. Elas surgem primeiramente nas áreas rurais, mas logo em seguida em zonas urbanas, crescem e se espalham rapidamente por todo o Brasil. Ao ponto em que, em 1975, já se realiza o primeiro Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em Vitória – uma diocese que apoiava a formação de CEBs -, reunindo bispos e teólogos, sobretudo. No ano seguinte, ocorre o 2º. Encontro, também em Vitória. É só no 3º. Encontro, em João Pessoa, em 1978, que a grande maioria dos participantes são lideranças e representantes das próprias comunidades. Ao final dos anos 80, calculava-se em cem mil o número de comunidades em todo o país, atingindo cerca de dois milhões de pessoas.

Uma iniciativa que teve importância crescente na atividade de conscientização dos setores populares e também de classe média ligados à Igreja católica foi a Campanha da Fraternidade. Esta Campanha teve começo em 1964: trata-se de um conjunto de atividades que são desenvolvidas durante a Quaresma (fevereiro-março a abril-maio, conforme o ano), cerca de dois meses. A Assembléia anual da CNBB aprova um tema, em seguida, se elabora – com a ajuda de especialistas – um texto-base que serve de subsídio para toda a Campanha. A partir deste texto se elaboram uma série de outros materiais – círculos bíblicos, liturgias, etc. – tanto a nível nacional como a nível regional ou local, para serem utilizados para as reuniões semanais dos grupos. A partir do ano 1973, os temas se tornaram nitidamente sociais, como, por exemplo: “Repartir o pão” (1975); “Trabalho e justiça para todos” (1978); “Preserve o que é de todos” (1979).

Outra iniciativa a assinalar, foi a elaboração de cartilhas de formação política, em linguagem popular. Elas são feitas geralmente por ocasião das eleições, como uma forma de preparação. O ponto de partida parece ter sido a cartilha “ABC das eleições”, elaborada pela Arquidiocese de Fortaleza em 1976. Em 1982 ocorreram as primeiras eleições diretas para governador desde 1966[4]. Foi a ocasião para a publicação de mais de quarenta cartilhas, produzida a nível diocesano ou por um Regional da CNBB. 

A atuação da Igreja do Brasil no período da ditadura militar ficou marcada também pela intervenção do Vaticano, a partir do pontificado de João Paulo II, eleito em 1978. A postura do novo Papa começa a ficar evidente quando do seu discurso de abertura da III Conferência Episcopal Latino-americana em Puebla, México (1979). Pouco tempo depois, em visita a Nicarágua em 1983 – governada pelos sandinistas desde a vitória da revolução, em 1979 -, o Papa João Paulo II recriminou em público um dos quatro ministros padres, Ernesto Cardenal. João Paulo II, originário da Polônia, um país do bloco soviético, não compreendeu a luta da Igreja latino-americana contra a injustiça social, que tinha raízes no sistema capitalista e na dominação imperial dos EUA. Seu pontificado criou sérias dificuldades para bispos, padres e leigos comprometidos com a libertação das maiorias oprimidas do continente. Sendo a CNBB a conferência episcopal mais importante da região, foi sobre ela que se exerceu a maior pressão. Assim é que, de um lado, a CNBB se encontrava sob a pressão do regime militar e, de outro, do Vaticano. Ao menos 30 bispos sofreram alguma forma de advertência oficial do Vaticano em razão de sua atuação no campo sócio-político.

A ofensiva maior foi contra a Teologia da Libertação. A preocupação com a influência da análise marxista nos textos de seus autores levou a uma condenação pela Congregação da Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício), intitulada “Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação”, escrita pelo Cardeal Ratzinger (1984). Neste mesmo ano, abriu-se um processo contra o teólogo Leonardo Boff, o maior expoente desta teologia no Brasil. O processo resultou na sua redução ao silêncio por um ano (proibição de dar aulas e de publicar), determinado pela mesma Congregação em 1985. A pressão de vários bispos brasileiros em favor do teólogo conseguiu a suspensão do silêncio um mês antes do prazo determinado. Seguiu-se uma nova Instrução da Congregação, publicada em 1986, mais branda. No entanto, a Teologia da Libertação continuou sendo perseguida, suas publicações foram dificultadas ou suspensas, vários de seus autores sofreram processo do Vaticano, como recentemente ocorreu com o teólogo jesuíta Jon Sobrino (2007), já no pontificado de Bento XVI.

Observações conclusivas

A postura da Igreja católica frente à ditadura militar passou, como se acaba de ver, por diferentes fases: uma fase inicial de aprovação, durante a qual ocorrem conflitos localizados, onde já se prenunciam embates maiores (1964-1970); uma fase de oposição aberta (1970-1976); e uma fase que dá continuidade à oposição, mas onde se observa um maior engajamento junto aos setores populares (1977-1985).

A partir da intervenção do Vaticano e da nomeação de D. Paulo Evaristo Arns para a Arquidiocese de São Paulo, as tentativas de conciliação dão lugar a uma postura mais firme, caracterizada pela defesa dos direitos humanos, em particular dos presos políticos, dos trabalhadores, rurais e urbanos, dos indígenas. Nascem, durante este período, duas instituições que foram muito importantes durante a ditadura e continuam com um papel significativo até hoje, o CIMI e a CPT.

Pode-se dizer, grosso modo, que o episcopado brasileiro era constituído por três grupos principais: a maioria moderada, um grupo restrito de conservadores, e um grupo um pouco maior de bispos progressistas[5]. Os conservadores conseguiram liderar a Igreja logo após o golpe (1964-1968), sua hegemonia vai sendo progressivamente contestada, em boa parte por causa da agressividade do regime militar. A partir de 1970, a liderança vai sendo tomada pelo grupo progressista, que se torna hegemônico nos anos seguintes: isto se percebe claramente pelas posições tomadas pela direção da CNBB, pelos documentos lançados por grupos regionais de bispos e pelos documentos aprovados nas Assembléias anuais. A maioria, mesmo não tendo as mesmas posições dos progressistas, acaba seguindo a sua orientação.

O mais significativo no caso da Igreja do Brasil foi o seu enraizamento nas bases populares, especialmente com as comunidades de base. E não houve sérios conflitos entre as CEBs e a hierarquia episcopal graças a algo que foi original à experiência brasileira, que foi o fato de que as CEBs foram iniciadas, em muitas dioceses, por iniciativa de bispos: elas não foram, aqui, uma iniciativa de leigos contra bispos, mas de um setor de bispos, padres e leigos juntos, numa mesma direção. Esta presença popular na Igreja vai se refletir no teor dos documentos que, pouco a pouco, vão ser escritos em linguagem acessível, pensando nos leitores populares.

Este momento extraordinário da Igreja brasileira não vai durar eternamente. Finda a ditadura, não havendo mais a pressão da ditadura, podendo a sociedade civil se expressar plenamente, através dos movimentos sociais, dos sindicatos e outras entidades e, sob pressão do Vaticano para limitar sua presença política, a Igreja vai pouco a pouco se tornar mais tradicional. Permanece um setor comprometido com as classes populares e com a transformação da sociedade no sentido da justiça social: as comunidades de base, as pastorais sociais, a Campanha da Fraternidade e tantas outras iniciativas. Mas este setor não tem mais a hegemonia, são outras as preocupações centrais, os interesses principais não são mais os mesmos.

 

Referências bibliográficas

BEOZZO, José Oscar (1993). A Igreja do Brasil: de João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo. Petrópolis, Vozes.

BARROS, Raimundo Caramuru de (1967). Comunidade eclesial de base: uma opção pastoral decisiva. Petrópolis, Vozes.

BETTO, Frei (2006). Batismo de sangue. Guerrilha e morte de Carlos Marighella. 14ª. ed. (1ª. ed.: 1982), Rio de Janeiro, Rocco.

___________ (2009). Diário de Fernando. Nos cárceres da ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro, Rocco.

BOFF, Clodovis et alii. (1997). As comunidades de base em questão. São Paulo: Paulinas.

BRUNEAU, Thomas (1974). Catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo, Loyola.

CASALDÁLIGA, Pedro (1971). Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social.

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