Por Marcelo Barros
Pouca gente sabe que, etimologicamente, o termo Igreja (em grego ekklesia) é sinônimo do que hoje se chama cidadania. Nos primeiros séculos de nossa era, nas cidades de cultura grega, Igreja designava a assembleia de cidadãos que tinham poder de decisão. Quando Paulo chamou de Igrejas os grupos de discípulos e discípulas de Jesus, fez com que mulheres, crianças, pobres e até escravos/as que nunca tiveram direito à cidadania do Império, assumissem a condição de cidadãos da nova realidade que Deus prometia fazer vir ao mundo para transformar todas as estruturas da sociedade. Paulo escreve à comunidade cristã de Corinto: “Vejam, irmãos, no grupo de vocês, não existem muitos sábios, poderosos ou nobres, conforme o mundo. Pelo contrário, o que o mundo considera louco, fraco e desprezível, Deus escolheu para confundir os sábios e poderosos. Deus escolheu o que aos olhos do mundo não vale nada para confundir o que o mundo considera importante” (1 Cor 1, 26- 28).
Durante os primeiros três séculos, as Igrejas cristãs foram fieis a essa vocação. Eram ensaios de um mundo novo, mais humano e justo. Procuravam inspirar-se nas bem-aventuranças proclamadas por Jesus, anúncios de mudança de vida para os pobres, pequenos e pessoas que sofrem. A partir do século IV, o Cristianismo foi reconhecido como religião oficial do Império Romano e acabou por conviver com muitas estruturas injustas do mundo. Há mais de vinte anos, o papa João Paulo II, em nome da Igreja Católica, pediu perdão aos índios e aos negros pela cumplicidade da hierarquia da Igreja Católica com a escravidão e a dominação imposta pelos colonizadores.
Nesses dias de setembro, as comunidades cristãs latino-americanas recordam os 51 anos da conferência episcopal de Medellín, na Colômbia, reunião que juntou bispos católicos de todo o continente. Essa reunião deu a nossas Igrejas locais um rosto próprio, inserido em nossas realidades. O documento de conclusões da assembleia de Medellín insistiu na presença e atuação dos cristãos e cristãs nos processos sociais e políticos para transformar a América Latina em um continente mais justo e igualitário. Em Medellín, a missão da Igreja foi definida como serviço para cuidar da promoção humana de cada pessoa e dos povos, a partir dos valores da justiça, paz, educação e família. Isso foi em 1968, quando muitos países do continente viviam sob forte ditadura militar, patrocinadas e garantidas pelo governo imperial dos Estados Unidos da América do Norte. Por causa de sua opção evangélica e transformadora, a Igreja Católica e outras Igrejas sofreram muito. Bispos, padres, religiosos/as e leigos/as, foram perseguidos, presos e torturados. Muitos homens e mulheres deram a vida para testemunhar o projeto divino de justiça e amor a ser realizado no mundo. Esse testemunho do projeto divino na luta para transformar as estruturas de injustiça da sociedade custou o sangue de muitos mártires, tanto pessoas ligadas à fé e às Igrejas cristãs, como simplesmente pessoas que se consagravam à justiça e aos direitos humanos. Infelizmente, a partir dos anos 80, muitos pastores e grupos da Igreja Católica voltaram ao modelo de Igreja centrada em si mesma e ciosa do seu poder e prestígio social. Isso fez com que, em muitos ambientes de Igreja, a conferência de Medellín tenha sido esquecida e ignorada.
Atualmente, com a influência positiva do papa Francisco, comunidades católicas e de outras Igrejas cristãs têm consciência de que devem reler, atualizar e completar as intuições principais da conferência de Medellín, para participar ativa e positivamente dos processos sociais e políticos novos que vivem muitos de nossos países latino-americanos nesse momento social e político no qual o Império norte-americano conseguiu de novo hegemonia no nosso continente. Através de governantes servis e de uma elite que quer manter os seus privilégios, ou através de guerras híbridas, baseadas principalmente na difusão de notícias falsas e da manipulação desonesta da opinião pública, o Império tenta controlar novamente toda a América Latina.
A memória da conferência episcopal de Medellín e o modelo de Igreja que saiu desse evento precisa ser retomado e completado. O documento 5 das conclusões de Medellín continua muito atual quando propõe: “Devemos dar a nossas Igrejas na América Latina, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida comprometida na libertação de cada ser humano e de toda a humanidade” (Medellín, 5, 15).