Tema: O livro do Deuteronômio
Lema: “Abre tua mão para teu irmão” (Dt 15,11)
Por Carlos Mesters e Francisco Orofino
A origem do livro
O livro do Deuteronômio é fruto de uma intensa reforma religiosa, ocorrida em Judá durante os reinados dos reis Ezequias e Josias. Durante os dez anos da menoridade do rei Josias, o grupo de regentes, que assumiu o governo, retomou uma reforma que tinha sido iniciada pelo rei Ezequias cerca de 60 anos antes (2Rs 18,1-8). Depois, aos 18 anos de idade, o próprio rei Josias deu continuidade à reforma, sobretudo a partir do ano 622, o ano em que foi encontrado no templo o assim chamado “Livro da Lei” (2Rs 22,8-10). É que nos trabalhos da restauração do prédio do templo, os sacerdotes encontraram o que eles chamaram o “Livro da Lei”. Provavelmente, este Livro da Lei era o rascunho do atual livro do Deuteronômio.
Eles levaram o “Livro da Lei” ao rei Josias e o leram diante dele. Diz a Bíblia: “Ao tomar conhecimento sobre o conteúdo do livro da Lei, o rei rasgou a roupa, e deu esta ordem para o sacerdote Helcias, para Aicam, filho de Safã, para Acobor, filho de Micas, para o secretário Safã e para o ministro Asaías: “Vão consultar Yhwh por mim e pelo povo, a respeito do conteúdo deste livro que foi encontrado. A ira de Yhwh deve ser grande contra nós, porque nossos antepassados não obedeceram às palavras deste livro, e não praticaram tudo o que nele está escrito” (2Rs 22,11-13). Eles então foram consultar a profetisa Hulda, que confirmou a veracidade do livro (2Rs 22,14-20).
O Livro da Lei encontrado no Templo era uma releitura atualizada da Lei de Deus feita, provavelmente, pelos levitas em vista da situação difícil que o povo estava enfrentando naquele momento. Assim, na origem do livro do Deuteronômio não existe uma pessoa determinada como autor ou escritor, mas existe todo este movimento de reforma, iniciado pelos profetas, aprovado pelo rei Ezequias e levado para a frente pelos levitas e pelo rei Josias.
* A divisão
O Deuteronômio se apresenta como sendo o Testamento de Moisés. É que no fim dos quarenta anos de peregrinação pelo deserto, pouco antes de morrer, Moisés fez três discursos dando ao povo as instruções finais, alertando sobre os perigos, indicando os caminhos a seguir e pedindo fidelidade a Deus que os tinha acompanhado ao longo da travessia pelo deserto. Por isso, o livro do Deuteronômio se divide em três partes desiguais, conforme o tamanho dos três discursos de Moisés:
Primeiro Discurso | Dt 1,1 até 4,43 | Discurso de introdução ao Livro da Lei |
Segundo Discurso | Dt 4,44 até 28,68 | A Lei propriamente dita |
Terceiro Discurso | Dt 28,69 até 30,20 | O objetivo da lei: escolher a vida (Dt 30,20) |
Apêndice | Dt 31,1 até 34,12 | O final da vida de Moisés e alguns cânticos |
* A Mensagem
O movimento Deuteronomista recolhe todo este espírito de renovação iniciada pela pregação dos profetas do reino do Norte, sobretudo dos profetas Elias, Eliseu, Amós e Oséias. Ele é o ponto de partida de toda uma releitura da história do povo de Deus que agora está relatada nos livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Este conjunto de livros, às vezes, é chamado História Deuteronomista. É no espírito do Deuteronômio que foi feita a redação final da história do Povo de Deus, registrada no Antigo Testamento.
O Deuteronômio é o livro do Antigo Testamento mais citado nos escritos do Novo Testamento, mais de 200 vezes! É com citações do livro do Deuteronômio, que Jesus vence as tentações do demônio no deserto:
- “Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3; Mt 4,4).
- “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Dt 6,16; Mt 4,7).
- “Ao Senhor teu Deus adorarás e só a Ele prestarás culto” (Dt 6,13; Mt 4,10).
Os sete temas centrais do Deuteronômio
O objetivo da reforma era este: levar o povo a observar melhor a Lei de Deus: “Hoje tomo o céu e a terra como testemunhas contra vós: eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência, amando a Yhwh teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a ele. Porque disto depende a tua vida e o prolongamento dos teus dias” (Dt 30,19-20).
Ao redor deste objetivo central aparecem sete temas que concretizam o objetivo da lei. São como sete janelas diferentes para olhar para dentro da mesma casa e descobrir a mensagem do livro do Deuteronômio. Eis os sete temas ou as sete janelas:
- O perfume do amor: Ser a revelação do amor de Deus no meio dos povos.
O amor de Deus é a chave para interpretar os fatos da história. Tudo o que Deus nos faz, o faz por amor. Foi por amor que Deus tirou o povo do Egito: “7Se Yhwh se afeiçoou a vós e vos escolheu, não é por serdes o mais numeroso de todos os povos — pelo contrário: sois o menor dentre os povos! — 8e sim por amor a vós e para manter a promessa que ele jurou aos vossos pais; por isso Yhwh vos fez sair com mão forte e vos resgatou da casa da escravidão, da mão do Faraó, rei do Egito” (Dt 7,7-8).
- Memória: Quem perde a memória perde o rumo na vida.
Sem memória, o povo perde a sua identidade e o rumo da sua missão. Por isso, sem parar, do começo ao fim, o livro do Deuteronômio pede para o povo não esquecer nunca o seu passado: “Amanhã, quando o teu filho te perguntar: “Que são estes testemunhos e estatutos e normas que Yhwh nosso Deus vos ordenou?”, dirás ao teu filho: “Nós éramos escravos do Faraó no Egito, mas Yhwh nos fez sair do Egito com mão forte” (Dt 6,20-21). É quase um refrão que volta sempre: Dt 1,30; 4,20.34.37; 5,6.15; 6,12.21; 7,8.18; 8,14; 9,26; 11,3-4; 13,6.11; 15,15; 16,1.12; 20,1; 24,18.22; 26,8; 29,1; 34,11).
- Serviço: Pelo seu jeito de servir, o povo revela o rosto de Deus.
Libertado da escravidão no Egito, o povo recebeu a missão de ser a revelação do rosto deste Deus no meio dos outros povos: “Yhwh vos tomou e vos fez sair do Egito, daquela fornalha de ferro, para que fôsseis o povo da sua herança, como hoje se vê” (Dt 4,20), ou, como o próprio Deus falava ao povo através do profeta Isaías: “Eu, Yhwh, te chamei para o serviço da justiça, tomei-te pela mão e te modelei, eu te pus como aliança do povo, como luz das nações” (Is 42,6). Por isso, os que tem a função de governar, devem ser para o povo aquilo que o próprio povo deve ser para toda a humanidade: “Abre a mão em favor do teu irmão, do teu humilde e do teu pobre em tua terra” (Dt 15,11). Esta frase é o lema do mês da Bíblia deste ano de 2020. Ser o povo eleito de Deus não é privilégio, mas é serviço, é missão. Nosso privilégio é poder servir aos outros.
- Êxodo: Viver em estado permanente de Êxodo, de “Saída”
Constantemente, do começo ao fim, o livro do Deuteronômio manda lembrar o Êxodo: ”Recorda que foste escravo na terra do Egito, e que Yhwh teu Deus de lá te resgatou. É por isso que eu te ordeno agir deste modo” (Dt 24,18). Sem parar, falando ao povo, Moisés lembra e evoca o Êxodo. Para eles, o êxodo não era um fato só do passado. Era o Hoje deles. Era a experiência que eles estavam vivendo. Do começo ao fim, se repete: Hoje lhes ensino! Hoje ordeno! Hoje proclamo (cf. Dt 4,1.8.20. 38.40; 5,1. 3; 6,2.6.24; 7,11; 8,1.11.18; 10,13; 11,8.13.22.27.32; 13,19; 15,5.15; 19,9; etc.). O livro do Deuteronômio pede para o povo viver em estado permanente de Êxodo, pois a libertação não termina nunca, continua até hoje. Por isso, como diz o Papa Francisco, temos que “ser uma igreja em saída”.
- Comunidade: “Entre vocês não haverá nenhum pobre” (Dt 15,4).
A vida do povo deve ser um sinal da presença de Deus. Quando você vê cacos de vidro no chão, você conclui: “Alguém quebrou um copo!”. Naquele tempo, quando aparecia um pobre na comunidade, o profeta denunciava: “Alguém quebrou a aliança!” Pois a aliança era o compromisso solene de observar os Dez Mandamentos. Quando todos observam os Mandamentos de Deus, não surge pobre, nem poderia surgir. O povo responde à iniciativa de Deus vivendo em comunidade como irmãos e irmãs. Comunidade verdadeira é aquela que, na vivência da Palavra de Deus, revela igualdade, solidariedade e acolhida aos pobres: “Quando houver um pobre em teu meio, que seja um só dos teus irmãos numa só das tuas cidades, na terra que Yhwh teu Deus te dará, não endurecerás teu coração, nem fecharás a mão para com este teu irmão pobre; pelo contrário: abre-lhe a mão, emprestando o que lhe falta, na medida da sua necessidade” (Dt 15,7-8).
- Libertação: Deus nos libertou da escravidão no Egito.
O Deuteronômio revela que o verdadeiro Deus é aquele que libertou o seu povo da escravidão do Egito e lhe garantiu a vida. Por isso, Ele pede para o povo se libertar do culto aos ídolos e adorar só a Yhwh, o Deus verdadeiro, que prefere a misericórdia e a justiça aos cultos nos lugares altos: 6“Eu sou Yhwh teu Deus, aquele que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão- 7Não terás outros deuses diante de mim. 8Não farás para ti imagem esculpida, de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, no céu, ou cá embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra”. (Dt 5,6-8). O motivo principal que os levava a transmitir a história do passado era o desejo de nunca esquecer a libertação que Deus realizou em favor do seu povo, tirando-o da escravidão do Egito. Parece até um refrão que sempre volta: “Não esqueça que Deus libertou você da escravidão do Egito (cf. (Dt 1,30; 4,20.34.37.45; 5,6.15; 6,12.21-22; 7,8.18; 8,14; 9,7.12.26; 10,22; 13,6.11; 15,15; 16,1.3.12; 17,16; 20,1; 24,9.18.22; 26,5.8; 29,1.24; 34,11).
- Aliança: Compromisso mútuo entre Deus e o povo
O livro do Deuteronômio é o livro da Aliança de Deus com Israel. Foi Deus quem tomou a iniciativa da Aliança. Escrito vários séculos depois do Êxodo, o livro do Deuteronômio afirma: ”O Senhor nosso Deus fez aliança conosco em Horeb. Não foi com os nossos pais que o Senhor fez essa aliança, mas conosco que aqui estamos, todos vivos, hoje!” (Dt 5,2-3). Isto significa que, após mais de 600 anos, o Êxodo continuava sendo o Hoje deles! Na lembrança do povo, os tempos se misturam. O povo volta ao tempo do Êxodo, e traz o Êxodo para o hoje deles. Nós fazemos o mesmo. Cantamos: “O Povo de Deus no deserto andava”, e acrescentamos: ”Também sou teu povo Senhor e estou nesta estrada”.