ColunistasJoaquim Jocélio

Amar é a identidade de quem segue Jesus

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Seguimos nossa Introdução ao Novo Testamento (NT) tratando sobre um conjunto de livros muito especiais que são atribuídos ao Apóstolo João: os escritos joaninos. Formam essa coleção: o Evangelho de João, as três Cartas de João e o Apocalipse. É difícil afirmar que todos esses escritos são do mesmo autor e que seja ele o Apóstolo João. Mas uma coisa é mais provável: como esses escritos têm linguagens e teologias semelhantes em vários pontos, eles devem ser de uma mesma comunidade ou, ao menos, grupos que compartilhavam perspectivas eclesiais semelhantes. A esses grupos, chamamos Comunidade Joanina. 

Tais escritos surgiram no final do primeiro século na Ásia Menor de onde era essa comunidade, quando já começavam a surgir algumas perseguições do império, quando os cristãos vindos do judaísmo não podiam mais frequentar as sinagogas (casas de oração dos judeus). Muitas comunidades cristãs, nesse período, estavam se tornando mais hierárquicas, o que levava à diminuição do papel das mulheres e a uma maior preocupação com questões doutrinais. A comunidade joanina segue uma direção distinta, valorizando profundamente o papel das mulheres, relativizando a importância dos cargos de autoridade e colocando uma ênfase no amor como princípio fundamental das relações cristãs. Como exemplo, vale a pena destacar que “a grande novidade eclesial está no fato de João colocar na boca de Marta de Betânia a afirmação de fé que foi de Pedro. A proclamação da fé, que é a pedra fundamental da ecclesia, sai da boca de uma mulher” (S. Gallazzi) (Cf. 11,27).

O Evangelho de João (Jo) tem uma estrutura própria que não segue aquela dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Foi o último dos quatro evangelhos canônicos a ser escrito. Seu autor é associado a um personagem exclusivo desse Evangelho: o Discípulo Amado. Não há muito consenso nesse ponto. Raymond Brown, um dos grandes especialistas no Evangelho de João, defende que o Discípulo Amado “é obviamente o herói da comunidade. A tese de que é puramente ficcional ou somente uma figura ideal é de todo implausível” (R. Brown). Mas fato é que, sendo ou não um personagem histórico, o Discípulo Amado se tornou modelo e figura de todo discípulo do Senhor. Existem algumas semelhanças de João em relação aos sinóticos, o que pode indicar que João teve acesso a eles ou, ao menos, às tradições que os sinóticos receberam. Exemplo de semelhanças: atividade de João Batista; chamada dos primeiros discípulos (1,35-41); a purificação do templo (2,13-22); multiplicação dos pães (6,1-13); Jesus caminha sobre as águas (6,16-21); a confissão de Pedro (6,67-71); unção em Betânia (12,12-19); a última ceia (13,1-10); o anúncio da traição (13,21-30); a previsão da negação de Pedro (13,36-38). Contudo, há também diferenças bem significativas entre o Evangelho de João em relação aos sinóticos. Em João não há exorcismos nem curas de leprosos. Há também conteúdos próprios, como o diálogo com Nicodemos; o encontro com a samaritana; o lava-pés; diálogo com Pilatos; as palavras de Jesus dirigidas a sua mãe na cruz; as bodas de Caná; a figura do Discípulo Amado. Nos sinóticos, há milagres que revelam o Reino de Deus; em João, há sinais que revelam a pessoa de Jesus. Nos sinóticos, há parábolas, histórias com um ponto de comparação que explicam o Reino; em João, há alegorias com vários pontos de comparação que explicam a mensagem de Jesus.

O Evangelho de João é o único que traz uma profissão de fé afirmando que Jesus é Deus: “No começo a Palavra já existia: a Palavra estava voltada para Deus, e a Palavra era Deus… E a Palavra se fez homem e habitou entre nós” (1,1.14); “Tomé respondeu a Jesus: ‘Meu Senhor e meu Deus!’” (20,28). A figura de João “Batista” aparece de forma diferente. Ele nem é chamado de “Batista” neste Evangelho, ele também não é profeta. Ele é simplesmente a “voz” e uma testemunha, a Palavra é Jesus e ele sim é o único profeta. Jesus é a escada que une o céu e a terra, Deus e os homens (Cf. Gn 28,10-17). A morte de Jesus em Jo não é uma tragédia, mas a volta ao Pai; não há uma descrição tão dolorosa da Paixão como nos sinóticos. Em Jo, a Igreja deve seu ser a comunidade de amor; não há diferença de dignidade. Não há “apóstolos”, todos são apenas discípulos, afinal, “há muito na teologia joanina que tornaria relativa a importância de instituição e cargo, exatamente quando essa importância estava sendo enfatizada em outras comunidades cristãs” (R. Brown). Aparece um grau de intimidade: servo – discípulo – amigo. Quem tem mais autoridade na comunidade é quem ama mais (21,15-17). Não há texto apocalíptico nem que fale do juízo final nesse Evangelho; “para os evangelhos sinóticos a vida eterna é um dom que se recebe no juízo final ou no mundo futuro (Mc 10,30; Mt 18,8-9); mas para João é uma possibilidade presente” (R. Brown) (Cf. 5,24). O Espírito Santo é o dom do Ressuscitado (Jo 14-16). Jesus dá o Espírito Santo sem medida (3,34-36); convida a irem beber do seu Espírito (7,37-39); O Espírito é o outro Advogado; o Espírito da verdade que recordará tudo que Jesus disse (14,16-26); o Advogado dará testemunho de Jesus (15,26-27); vai desmascarar o mundo mostrando o que é o pecado, a justiça e o julgamento (16,6-15). No Espírito a missão de Jesus está sendo continuada; ele é a presença de Jesus ausente. 

As Cartas Joaninas são três cartas que fazem parte dos escritos joaninos assim como o Evangelho de João e o Apocalipse; isso por sua linguagem e temas semelhantes. Talvez não sejam do mesmo autor, mas da mesma comunidade de fé. O contexto das três cartas é muito semelhante: conflitos internos que ferem a unidade e que estão ligados a questões como a negação de Jesus vindo na carne e a reafirmação do amor ao próximo como condição para amar a Deus. Na verdade, tomando que o Evangelho de João é anterior às cartas, há a possibilidade de “que é precisamente a mensagem contida no evangelho que levou à divisão da comunidade, porque dois grupos a interpretavam diferentemente” (R. Brown). A Primeira João se destaca por ser mais longa, ensina que o conhecimento verdadeiro é amar, porque Deus é amor, já somos filhos de Deus e o verdadeiro amor lança fora o medo. A Segunda e a Terceira João são muito semelhantes, podem ser até de um mesmo autor. A Segunda João é escrita a uma Igreja personificada na figura da “senhora eleita”, cujos filhos conhecem a verdade. Repete o mandamento do amor e chama de anticristo quem nega Jesus Cristo encarnado. A Terceira João é endereçada a um certo Gaio. O autor o elogia por ter permanecido na verdade e por sua caridade. Critica um líder autoritário da Igreja chamado Diótrefes que impedia alguns missionários de irem até sua Igreja. Elogia um certo Demétrio. São escritos que defendem o amor como marca fundamental do seguidor e da seguidora de Jesus e a unidade como uma condição indispensável para se viver a fé. 

O Livro do Apocalipse é, sem dúvida, um dos livros mais conhecidos, embora não necessariamente dos mais lidos. E sem dúvida, um dos mais mal compreendidos, em boa medida, devido sua linguagem simbólica e suas visões complexas. A palavra “apocalipse” significa revelação, tirar o véu. Trata-se de um gênero literário que surgiu no séc. III a.C. com o fim da profecia e em forte período de perseguição. Longe de transmitir medo, o gênero apocalíptico buscava trazer esperança e resistência a um povo perseguido. “No movimento apocalíptico manifestam-se a experiência de vida e a fé dos pobres sem poder. É a teimosia da fé dos pequenos que não entregam os pontos e não querem deixar morrer a esperança!” (C. Mesters; F. Orofino). Suas características: Há uma revelação divina por meio extraordinário; há um mediador transcendente; acontecimentos futuros com realização próxima; fala da crise presente apelando para um tempo passado, apresentando algo futuro; traz forte perspectiva escatológica (julgamento último e novos tempos); é pseudônima (a autoria é posta para uma figura importante do passado); divide a história em etapas; o ponto de vista histórico é determinista (plano de Deus); não é oral; é marcada por símbolos, criaturas, cores, sinais; traz uma teologia da história e uma teologia do poder. 

O Apocalipse de João é o único exclusivamente desse gênero no NT. A obra foi escrita em períodos diferentes. Pelo menos dois parecem claros. 1º) Durante a perseguição do imperador Nero aos cristãos de Roma, assim como durante o acontecimento da guerra judaica com a destruição do templo entre 64 a 70 d.C. (Ap 4-11) e 2º) durante o império de Domiciano entre 81 e 96 d.C. (Ap 12-20). Tendo uma conclusão no final do primeiro século (Ap 1-3; 21-22). O autor não se identifica com nenhum personagem ilustre do Antigo Testamento. Apesar de aparecer figuras de anjos, o grande revelador é o próprio Jesus. O texto parece uma grande liturgia (22,21), celebração da vitória de Cristo sobre o mal, antecipação do Reino; mostra a profunda relação entre a liturgia e a vida, a celebração e a luta, a oração e resistência.

O Apocalipse busca ajudar as Igrejas a enfrentarem o inimigo externo (império) e interno (a falta de fé da própria comunidade). A Igreja, que é povo de sacerdotes (1,6; 5,10; 20,6), deve ser contestação ao mundo e romper com o que nega o Evangelho, nada de meio termo (3,14-16). Jesus ressuscitado está presente na comunidade e sua presença já é certeza pela fé de que as potências do mundo foram vencidas (5,11-14; 12,10-12; 17,11-14). O novo mundo já vai acontecendo dentro dos acontecimentos deste. O Dia de Javé será o julgamento definitivo dessas potências que oprimem o povo (6,16-17; 16,13-14; 1,4.8; 4,8//16,5; 6,9-10//16,7); principalmente a queda de Roma (17-18). O mundo antigo passará e um mundo novo é inaugurado a partir do acontecimento pascal (21,1-8; Is 66,17-25); Deus reina definitivamente (19,6). 

Os Escritos Joaninos nos recordam que fazemos parte da comunidade dos discípulos amados do Senhor e que o amor é a questão mais fundamental da fé: “Se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35). Ensina que caminhamos nesse mundo lutando para que a vontade do Senhor aconteça, pois Ele mesmo nos acompanha até a realização de sua promessa: “enxugar toda lágrima dos olhos deles, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor” (Ap 21,4).

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