Há experiências eclesiais que só acontecem nas periferias do mundo. Islândia, na Amazônia peruana, é uma ilha no rio Javari, na fronteira com o Brasil, uma pequena cidade de palafitas, que passa parte do ano submersa. Lá vivem e trabalham quatro Irmãs brasileiras, de três congregações diferentes, Irmãzinhas da Imaculada Conceição, Missionárias de Jesus Crucificado e Bom Pastor, junto com um padre diocesano espanhol.
O dia em que cheguei para visitá-los só estavam duas das irmãs que lá vivem, Ivanes Favretto e Zélia Gomes, junto com Cesar Caro. Esse projeto, como as irmãs reconhecem, surgiu por necessidade, porque todas queriam estar na Amazônia e era algo que as congregações não podiam fazer sozinhas.
Nesse sentido, Ivanes Favretto insiste que os carismas somados não se diluem. Ela diz que “vivemos a vida normal de uma comunidade religiosa, com diferentes carismas, mas a missão é o que se destaca. Por causa da missão, que é em primeiro lugar, é a essência deste projeto, nós vivemos com diferentes carismas, colocando tudo em comum, somando um ao outro. ” A religiosa das Irmãzinhas da Imaculada Conceição reconhece que “uma das principais formas de vida religiosa hoje é a intercongregacionalidade. Diante da situação que a vida religiosa hoje está e, gente ao clamor da Amazônia, para mim é o caminho principal. Não apenas das religiosas, mas também da vida religiosa masculina”.
É algo que corrobora Zélia Gomes, essa experiência “ajuda, força, exige que deixemos de viver o nosso carisma, o nosso grupo e concentrar-se na missão como o objetivo final e tudo o que é institucional, individual, passa a ser assumido pelo grupo, a instituição perde força ou centralidade e a missão ganha força”. Ela também insiste nas vantagens da intercongregacionalidade, porque “força os membros a se concentrarem no que é mais importante, que é a missão, e até superar algumas coisas da instituição”.
De fato, sua missão é acompanhar, estar presente nas comunidades ribeirinhas e indígenas, “de maneira livre, sem esperar pelos resultados, uma presença da vida religiosa, e mais do que vida religiosa, de pessoas que se juntam a eles, que acreditam naquele povo”, diz Ivanes. Realmente é uma missão que “tem que ir, de todo jeito, além da dimensão religiosa, eclesial, tradicionalmente falando, não que não têm a ver com a Igreja”, acrescenta Zélia, pois “o que se espera de uma paróquia, de uma presença religiosa, seria dar continuidade ao que é tradicionalmente religioso, isto é, aos sacramentos, grupos, movimentos, promover isso”.
Mas isso ainda não é possível em Islândia, porque, como a própria Zélia reconhece, “é preciso dar passos que ainda não foram dados. Aqui estamos começando muitas coisas, uma presença como Igreja. Nossa presença agora tem que ser em conjunto com os indígenas, com os povos amazônicos, tentando ajudar em suas necessidades, seja na formação ou nas necessidades básicas. Às vezes temos que nos preocupar com saúde, com banheiros, com energia. Tudo isso é uma presença da Igreja”.
Ivanes Favretto vai além, afirmando que “a primeira coisa é permanecer, estar com eles, sem se preocupar muito com a questão da evangelização”. De fato, ela afirma que “aqui a evangelização é estar com eles, um pouco como Jesus foi, para estar lá, sem perguntar se acreditam ou não, e fazendo o trabalho de ajudar nas necessidades. Eles pedem temas para refletir, eles pedem coisas para ajudar, e esse é o caminho “.
César é mais prático, e reconhece que a presença de um padre diocesano nesta comunidade é entendido desde uma equipe de vida e de trabalho, a ponto de afirmar que “eu estou aqui por acaso, eu vim para o Vicariato ao mesmo tempo que elas, e o bispo tinha que me enviar para uma missão, e depois de pensar e conversar com ele, foi aqui”. Sente-se enriquecido pela experiência, “mas nem tudo é tão bonito”, ele aponta, “como tudo o que é humano tem suas limitações, suas dificuldades e muitas vezes estar na Amazônia não é simplesmente eu venho e já, nem todas as pessoas conseguem se adaptar”. A isso se somam as dificuldades inerentes à intercongregacionalidade, de pessoas com diferentes modos de ver a vida religiosa, com diferentes bagagens formativas, de serem mulheres e homens. Por isso, como toda nova experiência, “é complicado, um processo que está sendo feito a cada dia”, reconhece César Caro.
Ninguém se arrepende de ter iniciado essa experiência. Na verdade, Zélia, vê que “além das dificuldades, nossa missão aqui se enriqueceu muito com essa mistura entre homens e mulheres, cada um desde seu modo de ser”. A Missionária de Jesus Crucificado não nega as dificuldades, mas vê que esta missão tem algo específico, fruto dessa mistura. Ela nunca tinha vivido com um padre tão de perto, e isso “é verdade que a partir de nossas características pessoais exige muito, exige superar muitas coisas, passando por cima de muitas coisas, é bastante exigente, mas como o centro é a missão, eu vejo isso como positivo “, diz Zélia Gomes.
Viver nessa comunidade, supõe “morrer em muitas coisas, mas se ressuscita em outras” afirma Ivanes, “a gente ganha experiência, capacidade de saber como se relacionar com diferentes carismas, com as pessoas”. Então, mesmo sendo positivo, exige “uma morte como uma oportunidade para crescer, para ressuscitar em outros espaços, e bastante mudança de mentalidade”, diz a religiosa, para quem tudo isto “é um processo de conversão diária, a pessoa que quer viver uma experiência de intercongregacionalidade ou de interinstitucionalidade deve estar aberta às mudanças, à conversão, aberta às realidades presentes no cotidiano da vida”.
Uma das dificuldades em muitas missões na Amazônia é a falta de recursos materiais. Na verdade, Cesar Caro reconhece que “nas comunidades do interior vamos pouco e rápido, duas vezes por ano, às vezes três, se pudermos, e em alguns lugares que apenas uma vez”. Há falta de dinheiro para chegar às comunidades, algo que não é entendido de fora. Em Islândia, como em muitas partes da selva, é uma freguesia que não gera recursos, “para que possamos trabalhar, temos que ser ajudados”, diz abertamente o padre espanhol.
Se faz necessário que sejam enviados recursos para que os missionários trabalhem. Nesse sentido, César disse ter falado sobre isso com as pessoas “para que eles fiquem sabendo que o que eles têm dado foi para ir para as comunidades para um encontro de animadores, e se não fosse por essa ajuda, não conseguiríamos”. Na realidade, “é um dinheiro que aparece menos, é menos espetacular do que se eu tivesse feito uma escola. Não, eu pedi para nós ir, para nós gastar muito dinheiro em gasolina, uma coisa que não é muito prosaica, mas você tem que explicar”, mostrando mais uma vez as dificuldades que muitas vezes passam os missionários.
Existem lugares de missão que se sustentam por conta própria, mas aqui, de acordo com o padre, “que a Igreja esteja em pé só é possível com ajuda de fora, para qualquer concerto, porque o que é arrecadado na coleta do domingo não dá nem para pagar a conta da energia. Isso é algo que não é entendido, que existem lugares onde a missão não só não dá nada, mas custa”. No caso das religiosas, as congregações mantêm sua presença e a missão que realizam.
Nesse sentido, o Sínodo para a Amazônia deve refletir sobre como manter a missão na Amazônia, algo que é caro. Durante muito tempo, as congregações assumiram o trabalho pastoral e a manutenção dos vicariatos, mas esse é um modelo que hoje não é fácil de fazer funcionar. Por essa razão, o Padre César reconhece que “teremos que procurar outro modelo para administrar os vicariatos, que são territórios da primeira evangelização”.
Ivanes Favretto também insiste nisso, porque “aqui é uma realidade de distâncias, que tudo custa tempo, dinheiro, energia e saúde. É necessário pensar de uma maneira diferente. Nem tudo é igual, a Amazônia é uma realidade que tem que ser pensada de outra forma, incluindo os missionários que vem, as experiências que você quer fazer”, esperando que, após pensar muito, o Sínodo ajude em alguma coisa.
Um dos seus trabalhos fundamentais é a formação do povo, que deve ser “desde eles mesmos, desde seus direitos, o que eles precisam e têm como direitos básicos, o território, a saúde”, diz Ivanes, “a evangelização começa aí, não é uma doutrina de baixo para cima, e sim construir a evangelização baseada em sua realidade, sua necessidade, construir uma Igreja a partir deles”. Você não pode pretender “querer formar para acomodar as pessoas, os animadores, a uma certa estrutura de Igreja”, acrescenta Zélia. Segundo ela, “o que acontece é que recebem formação e não atingem esse objetivo, porque têm outro modo de pensar, de se relacionar, de conversar”. É necessário mudar o modelo de formação, a partir do povo, e a estrutura, que também deve ser desde seu estilo.
Isso não é algo que é realizado de um dia para outro, “para chegar a isso, temos que ter muitos anos de vida e convivência com eles, para saber exatamente a maneira, o método a ser utilizado,” de acordo com Ivanes, que afirma que “tudo tem que ser construído”.
Às vezes parece que a Igreja vai contra a corrente. Para superar esta dinâmica, Zélia vê uma necessidade de simplificar a Igreja, “que possa refletir sobre a sua estrutura, suas regras, a sua maneira de ser, a fim de ter um rosto amazônico, e não o contrário, que o rosto amazônico passe a ter um rosto eclesial e clerical”. Portanto, a religiosa pensa que “em vez de estar questionando os indígenas, os leigos e dando-lhes ministérios que eles não têm nenhum interesse em tê-lo, seria que a Igreja se pergunte em relação às suas várias estruturas, ministérios, o que precisa desses ministérios aqui “.
A necessidade é que “seus ritos sejam incorporados, fazer uma liturgia a partir deles”, disse Ivanes, “aqui temos de pensar de uma forma muito diferente, pensar a forma de pensar a Igreja”, superando visões europeias. Ela pensa que “é morrer e nascer, essa forma tem que morrer e nascer um novo modo de ser Igreja, daqui”, algo que não sabe quanto tempo vai levar. Na mesma direção, Zélia disse que “a partir de nossas próprias frustrações, porque aqui a gente se frustra muito, porque você quer uma outra realidade de Igreja, espera outro tipo de Igreja e não sai, essa Igreja com estrutura, com sacramentos, não aparece”.
De fato, não é fácil superar uma mentalidade eclesial baseada em resultados, baseada em números. César Caro diz abertamente que “não estamos preparados para isso. Somos uma Igreja clerical e europeia, e acreditamos que a Igreja aqui tem que ser assim, e é um erro, a história prova isso”. Nesse sentido, ele dá como exemplo o Vicariato de São José do Amazonas, a qual pertencem, que em 75 anos, tem apenas dois padres indígenas.
Portanto, “a chave é fazer do seu jeito”, diz o padre, o que é difícil, porque as pessoas “perguntam se o que vão dizer, podem dizer. Estamos longe de moldar culturalmente a Igreja local, que é um processo que eles têm que fazer, do seu jeito”. Nesse sentido, continua Ivanes, “eles têm que acreditar que podem fazê-lo, e nós fornecermos as condições para que a partir deles, realmente ver que é possível construir, porque eles esperam muito, eles foram acostumados a esperar da Igreja institucional”.
A irmã Ivanes afirma ter visto pequenas sementes. Ela vê isso possível, mas com o tempo, com paciência, “porque a Palavra de Deus está lá, e às vezes não sabemos como ver esses sinais de Deus”. É necessário delegar um pouco, deixar que façam do seu próprio jeito, porque essa é “nossa Igreja católica na Amazônia”. Uma tarefa que não é fácil, como fazer a Igreja reconhecer que isso é ser Igreja, que esse estilo é Igreja. Nesse sentido, Zélia Gomes conta que o bispo lhe perguntou se ela achava que depois de um tempo de estar aqui vai crescer a Igreja, se as pessoas vão começar a participar, vão procurar os sacramentos, ao que ele diz que ficou procurando uma resposta
Uma visão orientada para os resultados que leva a pensar que esse modo de realizar a missão é perder o tempo. Mas, como César diz abertamente, “não há resultados nem haverá”. O que alguns querem é transformar isso numa Igreja “verdadeira”, que tenha muitos sacramentos, algo impossível para a irmã Zélia, “se quisermos uma Igreja com rosto amazônico”. Nesse sentido, Ivanes Favretto vai além, afirmando que “o Vaticano não deve perguntar para a Amazônia quantos batismos houve, quantos casamentos. Essa questão aqui não deveria existir”.
Não se trata de “fazer alguns arranjos, como se podam as árvores, é o contrário”, diz César, “o processo não é dizer, aqui é a Igreja que é a verdadeira, então agora nós fazemos alguns ajustes e o que aparece já é a Igreja amazônica”. Não é suficiente, segundo o padre, colocar penas na cabeça para celebrar ou trocar o pão pela mandioca, mas ver como a essência da Igreja é expressa e o que isso significa na cosmovisão do povo, como ela se manifesta. Ele afirma que “eles têm que inventá-lo e fazer uma celebração que torne visível que a comunidade é eucarística, que é também a Igreja de Jesus, mas o que vai sair dali, só Deus vai saber”.
Na região acompanhada pela missão de Islândia, “há muita competição, não só somos nós, existem muitas religiões, seitas de todos os tipos”, diz César Caro. Segundo ele, “há muitas pessoas que estão aqui há muito mais tempo do que nós e que fizeram um trabalho, que está várias décadas na nossa frente”. Ele se pergunta o que fazer agora, porque não se trata de chegar onde o povo é evangélico e dizer que eles estão errados e que temos a verdadeira religião.
Zélia conclui que “este sínodo, se realmente deseja construir uma igreja com rosto amazônico, tem de reconhecer oficialmente as sementes do Reino, que o que fazemos aqui é a Igreja, não precisamos nos preocupar para transformá-lo em algo mais, para estruturar uma Igreja para a qual muitas pessoas vêm, que têm muitos sacramentos”. Ela afirma categoricamente que esse modo de ser Igreja “é verdade, é real, viver como nós, e o rosto amazônico da Igreja seria reconhecer o que existe”.