“… o papel do profeta é falar. Tende medo somente do medo,
de quem acha melhor não cantar” (Pe. Zezinho)
Que tempo é este em que irmãos de uma mesma Igreja não conseguem mais dialogar? Que tempo é este em que irmãos de uma mesma comunidade eclesial são censurados por defenderem o impeachment de um genocida? Que tempo é este em que irmãos de grupos de whatsapp são intimidados por denunciarem o desrespeito aos moradores de rua: “se este grupo começar a falar de ‘política’, eu saio do grupo”? Que tempo é este em que irmãos de uma mesma Igreja promovem o desmonte da Campanha da Fraternidade Ecumênica, inclusive incitando o povo a não participar da coleta no Domingo de Ramos, cujos recursos são destinados aos projetos sociais? Que tempo é este em que um irmão de caminhada ao incentivar a comunidade a participar do Pacto pela Vida e pelo Brasil é denunciado à sua própria diocese por lideranças, como “satanás” e adepto da teologia da libertação e do trabalho na base? Que tempo é este em que as autoridades sanitárias alertam as Igrejas sobre restrições nas celebrações presenciais por causa do aumento severo de contaminação pela Covid, e padres promovem encontros de louvor pelo fim da pandemia? Que tempos são estes, meu Deus?
“Não temais os que vos ameaçam, com a morte ou com difamação. Não temais os poderes que passam, eles tremem de armas na mão. Não temais os que ditam as regras, na certeza de nunca perder. Tende medo somente do medo, de quem cala ou finge não ver”.
Não bastasse a crise pela qual passamos, desnudando cada vez mais as desigualdades sociais, regada de mentiras, deboches e menosprezo pela vida, sobretudo na saúde por parte dos governantes, ainda temos que lidar com os “negacionistas eclesiais”, investidos de autoritarismo, clericalismo, arrogância e intimidações verbais. Por vezes, substituem o distanciamento social, pelo “distanciamento da realidade social”, onde se encontram os sujeitos da Igreja enlameada, em cujos lugares os holofotes não chegam.
“Não temais os que gritam nas praças, que está tudo perfeito e correto. Não temais os que afirmam de graça, que vós nada trazeis de concreto”.
Mas o papel do Profeta é falar, mostrar o projeto de Deus e possibilitar processos de mudanças na realidade. É da Bíblia que nos vem as respostas para nossas inquietações nestes tempos difíceis e não deixar morrer a profecia, como pedia Dom Helder.
A profecia na Bíblia é exercida por homens e mulheres do meio do povo (Ex 20,2; Dt 5,6). Pessoas sensíveis aos clamores do povo simples que, em sintonia com sua realidade, atuam na perspectiva da fé libertadora. Têm corações sonhadores, pés no chão, mãos sujas do trabalho e a cabeça erguida. Têm clareza do lugar que ocupam: o lado da justiça e do direito. Devem repreender e acusar os reis ou chefes, quando constatada sua arrogância diante do povo: “Ai daqueles que, deitados na cama, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos e os roubam” (Miq 2,1-2).
É da natureza da profecia, denunciar quando a fartura de uns se sobrepõe à miséria de outros, gerando abuso e opressão contra os pobres: “Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo” (Miq 7,3-4). Devem censurar toda forma de idolatria do povo de Israel e a hipocrisia presente nas formalidades religiosas, para evitar o surgimento de falsos profetas. Se a denúncia é a marca da profecia, também o é, o anúncio da bondade de Deus para quem o procura com coração sincero.
Os profetas e profetizas continuam hoje em nossas comunidades eclesiais de base e devem ser portadores da boa notícia da vida nova e da esperança. A profecia exige a capacidade de interpretar os sinais dos tempos ouvindo os gritos dos empobrecidos. E isso só se faz com coragem profética: “Não se conformem com esse mundo, mas o transformem pela renovação de suas mentes” (Rm 12, 1).
Se a gente calar, quem vai falar?