Por Luis Miguel Modino
As ameaças aos povos indígenas têm se tornado uma constante desde a chegada ao poder do atual governo brasileiro, que segundo Guenter Francisco Loebens, mais conhecido como Chico do CIMI, promove uma política “orientada ao contrário do bem comum”, que faz realidade “um processo de vulnerabilidade da vida dos povos indígenas”.
Depois de 40 anos trabalhando no Conselho Indigenista Brasileiro nos estados de Amazonas e Roraima, Chico Loebens reconhece com temor que “a força do poder econômico é muito grande”, mas também que “os povos indígenas têm sido o segmento da sociedade brasileira que de forma mais ágil tem se mobilizado para assegurar seus direitos nesse atual contexto”. Ele afirma que com o processo sinodal, “vai se ampliando dentro da nossa Igreja esse sentido, essa solidariedade com esses povos”, entre quem “tem gerado muita esperança” diante de uma Igreja parceira e aliada em suas demandas.
Da Igreja, Chico Loebens pede uma “presença gratuita”, e também que seja procurada uma “sensibilização interna da Igreja em relação a esses povos”, que têm na conservação do território o principal desafio para sua sobrevivência. Ao mesmo tempo, ele vê na “vitalidade do movimento indígena”, no fato de que eles estão “dispostos a lutar, a resgatar seus direitos e a possibilidade de construir seus projetos de futuro”, como a principal esperança.
Quais são hoje, especialmente nos últimos meses com o novo governo, as ameaças que estão presentes em referência aos povos indígenas na Amazônia brasileira?
O que se verifica é que com a política, ou a anti política do governo, porque na verdade está orientada ao contrário do bem comum, o que se verifica é uma corrida para a exploração das riquezas naturais e também pessoas, de todas as ordens. Se sentem livres para entrar nos territórios dos povos indígenas daqui da Amazônia, sejam eles demarcados ou não demarcados, mesmo onde existem unidades de conservação, e isso também tem resultado em violência física contra lideranças. Então a gente tem hoje um processo de vulnerabilidade da vida dos povos indígenas em função dessa política do Bolsonaro de desconstruir todos os direitos de proteção e de garantia desses povos.
Inclusive, o presidente Bolsonaro tem falado repetidamente que vai fazer tudo o possível nesse sentido, e existem rumores que no mês de setembro poder ser promulgado um projeto de lei que libere a mineração nas áreas indígenas. Realmente isso é possível, os povos indígenas não têm mais a defesa da constituição?
Aí, em termos da mineração, tem duas situações, a mineração no subsolo, aí tem uma brecha constitucional que é possível, mas o garimpo, evidentemente, não é possível, esse faz parte do que se considera a riqueza do solo e sobre isso os povos indígenas têm usufruto exclusivo. A questão de legalizar garimpo em terras indígenas, isso legalmente não é possível. Por outro lado, o que preocupa é uma tentativa de regularização da mineração, que hoje pelos dispositivos constitucionais tem que passar por aprovação do Congresso Nacional, via consultas, tudo isso, mas que não esta regulamentado.
Isso pode ser regulamentado através de uma lei, essa lei teria que ser aprovada no Congresso. Existe uma lei tramitando, de Romero Jucá, que é muito ruim, sem nenhuma cautela com respeito à exploração, que poderia ser, por esse projeto, feito até encima das aldeias, destruindo todos os rios que passam pelas aldeias, ou pelos lugares sagrados sem ter nenhuma cautela em relação a isso. Pelo que o Bolsonaro está falando, é capaz até de piorar a proposta do governo de regulamentação. Evidentemente é uma preocupação grande, porque hoje existem requerimentos para a exploração, milhares de requerimentos, pedidos de exploração mineral em terras indígenas. Existe uma expectativa de muitos, no sentido de que seja regulamentado, e aí os povos indígenas vão ser colocados em um desafio enorme.
Evidentemente que os povos indígenas tem assegurada a legislação pela própria Constituição e pelo direito internacional, a convenção, a consulta. Mas a força do poder econômico é muito grande, então não é uma discussão fácil das comunidades se organizarem no sentido de resguardar os seus direitos.
A gente vê que os povos indígenas vão conseguindo algumas pequenas vitorias, como a recente determinação do Supremo Tribunal Federal que disse que a demarcação de terras indígenas não pode ser assumido pelo Ministério de Agricultura. As organizações indígenas, o Conselho Indigenista Missionário, ainda tem esperança que as próprias instituições brasileiras cuidem dos direitos dos povos indígenas?
Acho que talvez os povos indígenas têm sido o segmento da sociedade brasileira que de forma mais ágil tem se mobilizado para assegurar seus direitos nesse atual contexto. Eles tiveram suas vitórias, não só no Tribunal Supremo, mas também tiveram uma vitória em relação à própria saúde indígena, de manter seu sistema e assegurar uma Conferência Nacional de Saúde Indígena, que estava suspensa. Ocuparam o ministério e a secretaria, e conseguiram ter um ajustamento de conduto, através do Ministério Público, para que minimamente se assegurasse a perspectiva de que essa atenção à saúde continuasse sendo de forma que contemplasse a tradições, os usos, os conhecimentos dos povos indígenas e que ela fosse efetiva e tivesse uma abrangência nacional.
Nesse sentido conseguiram sustar a tentativa de passar a saúde para a responsabilidade dos municípios, que transformaria a saúde em um caos e ficaria à mingua, sobretudo em função dos recursos que normalmente não são priorizados para a questão indígena pelos municípios.
A Amazônia está vivendo um momento sinodal e desde o dia em que o Papa Francisco anunciou o Sínodo, 15 de outubro de 2017, falou sobre a necessidade de prestar uma atenção especial aos povos indígenas. Como organização indígena que faz parte da Igreja católica, vocês pensam que em todos os passos dados ao longo do processo sinodal, a Igreja está fazendo realidade o desejo de Papa?
A iniciativa do Sínodo foi vista por nós como um sinal de grande esperança, de mudança, de transformação interna, também da Igreja, para que pudesse se envolver mais em defesa da vida e dos direitos dos povos da Amazônia. Nesse sentido, vai se ampliando dentro da nossa Igreja esse sentido, essa solidariedade com esses povos. Por outro lado, os sinais que partem internamente é de muita resistência contra essa perspectiva evangélica de que todos tenham vida e vida em abundância. Um fechamento de setores no sentido da estrutura autoritária e conservadora, que desconhece a realidade do povo, isso também tem se manifestado muito fortemente. Acaba sendo uma disputa e Deus queira que o Evangelho prevaleça.
Pelo seu contato com os povos indígenas, como eles se manifestam, como estão reagindo, o que eles pensam, a respeito do Sínodo para a Amazônia?
Acho que tem gerado muita esperança para os povos indígenas, começam a ver na Igreja uma parceira, uma aliada em suas demandas, uma aliada em seus direitos. Veem o Sínodo com essa perspectiva aí, e tomara que a resposta, a orientação que vem do Sínodo para toda a Igreja, seja adequada a essa expectativa dos povos indígenas. Eles, por outro lado, questionam as formas ainda que permanecem, no sentido dessa perspectiva da conquista religiosa, e muito fortemente buscam que a relação se dê na base do diálogo, na valorização das suas espiritualidades, das suas culturas. Que definitivamente a Igreja abandone como um todo a imposição religiosa que ainda se faz presente em muitos setores.
O que fazer para convencer à Igreja sobre a necessidade de abandonar essa vontade de proselitismo, e fazer um trabalho com os povos indígenas a partir da presença que é um dos desafios que coloca o Instrumentum Laboris?
Essa metodologia da presença gratuita teria que ser retomada com muita força, que não existe possibilidade de um diálogo gratuito sem que a Igreja, suas pastorais, possam compreender a diversidade sociocultural dos povos indígenas, compreende-los na sua especificidade, na sua diferença, e por outro lado, se despir dessa certeza de ser a dona da verdade nesse campo religioso. De fato, se você vai para uma proposta de diálogo intercultural, inter-religioso, se você vai com a intenção de conquistar, já não existe diálogo, o diálogo poderia supor você se converter. Não é que o diálogo não possa levar à conversão, mas se você não admite conversão dos dois lados, então também não é diálogo. Esse é um desafio um pouco colocado. A presença é que converte às pessoas, estando no meio, você consegue sentir o clamor do povo.
Em seu trabalho no CIMI, ao longo de quarenta anos, uma das suas prioridades tem sido o trabalho em relação aos povos em isolamento voluntário, ou povos livres, na terminologia do CIMI. Qual é a realidade hoje desses povos, que o próprio Instrumento de Trabalho diz que na Pan Amazônia existem entre 110 e 130 povos nessa situação?
Pode ser até mais, porque como resultado do nosso trabalho nos últimos anos, o número de evidencias desses povos cresceu muito. Um dos desafios é a própria comprovação da sua existência. No Brasil existem na listagem da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), e também na nossa, notícias de 112, 113, referências de existência de povos isolados, e na verdade, a FUNAI só reconhece a existência de entre 26 e 28. Isso significa que os outros estão totalmente invisíveis e não tem qualquer política de proteção em relação a esses povos que podem existir e que em muitos casos as evidências são muito fortes que existam.
O estado não tem nenhum mecanismo de proteção em relação a eles, porque o estado, através da FUNAI, ele se faz presença de alguma forma, e agora cada vez de forma mais fragilizada, onde eles têm a comprovação da existência desses povos. E esses são os povos que as vezes a gente usa a terminologia de falar que são povos vulneráveis, mas eles em si, não são povos vulneráveis, eles estão em situação de vulnerabilidade por causa das agressões e da invasão dos seus territórios.
Uma das preocupações em relação a eles é o garimpo. É impressionante o número de situações que existem com presença de garimpeiros em seus territórios. Aí podemos citar aqui os yanomami, lá existe com certeza um grupo isolado, mas se tem notícias de outros quatro grupos no território yanomami, na região dos sateré-mawé, no estado do Amazonas, no Parque Nacional, também existem fortes evidências de presença, tem garimpo. No rio Abacaxis, no estado de Amazonas, da mesma forma, no rio Tapajós tem umas cinco referências de grupos isolados, e o garimpo está tomando conta lá também. Em Rondônia, nos uru-eu-uau-uaus, também grupos isolados em terra demarcada, com garimpo. No Javari também existem a maior concentração de povos libres, também já está com garimpo. Inclusive, um tempo atrás, teve notícias de um possível massacre, que até agora não se confirmou, mas recentes notícias dizem que em outra região, também está a invasão do garimpo. Então, uma das grandes preocupações são as atividades exploratórias de recursos naturais que alcançam esses povos.
A outra dimensão são os megaempreendimentos, estradas, hidroelétricas, por exemplo a hidroelétrica de Belo Monte, tem agora provocado a invasão de uma terra indígena, onde existem isolados, o desmatamento crescendo exponencialmente. Então, coloca esses povos numa situação de risco de genocídio. Por outro lado, a fragilização dos mecanismos de proteção, de garantia territorial desses povos. E também hoje uma tendência que se vê a partir do próprio governo brasileiro e que se manifesta concretamente no Vale do Javari, é essa perspectiva do contato forçado, se abre mão da proteção dos seus territórios para uma perspectiva de contato. Vejo uma leitura de que não existe proteção possível, então temos que contata-los, etecetera, que isso seria o caminho. E aí, dessa forma se desrespeita a vontade deles de terem a sua forma de vida própria, do seu jeito. É um pouco isso que está configurando em relação aos povos livres, com grandíssima preocupação porque a partir do governo brasileiro, essa sinalização é aberta para que se invadam os territórios dos povos indígenas, das unidades de conservação, e isso aumenta, e muito, o risco de sobrevivência desses povos.
No Instrumentum Laboris existe um capítulo que fala sobre povos indígenas em isolamento voluntário e dentro das sugestões coloca, “exigir dos respetivos governos que garantam os recursos necessários para a proteção efetiva dos povos indígenas isolados”. Como a Igreja, em nível vaticano ou da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), poderia pressionar para que essa exigência se traduza em algo efetivo, ainda mais diante de uma situação política em que diferentes governos na Pan Amazônia parecem não estar dispostos a respeitar os povos indígenas, ainda menos aqueles que se encontram em isolamento voluntário?
A partir do Vaticano existem os meios diplomáticos em relação a manifestar insatisfação em relação ao que está acontecendo. A CNBB poderia tomar atitudes mais contundentes no sentido de revelar essa realidade. Hoje um dos grandes problemas é a invisibilização desses povos, de que eles de fato existem e de que estão ameaçados. Eu acho que a CNBB poderia incluir essa questão, e trabalhar também um pouco na questão da sensibilização interna da Igreja em relação a esses povos, mais também posicionamentos contundentes de denúncia sobre esse risco que eles enfrentam. Acho que é por aí que se pode fazer e o esforço de juntar cada vez mais aliados e pessoas sensíveis com essa temática para que eles tenham assegurado seu direito territorial e à vida.
O atual presidente do CIMI, Dom Roque Paloschi, e o anterior, Dom Erwin Kräutler, têm sido grandes defensores da causa indígena e têm se manifestado como uma voz profética em diferentes oportunidades. O senhor pensa que eles têm o respaldo efetivo do resto do episcopado brasileiro, ou muitas vezes se convertem em franco tiradores em uma guerra que os supera?
Por isso que seria muito importante que a CNBB tomasse esse rol, essa causa, porque de fato tem uma força, tem uma abrangência a voz de Dom Erwin, Dom Roque, e outros bispos preocupados com isso, mas ela de fato é uma abrangência limitada. Por isso seria importante que o colegiado dos bispos tivesse uma voz mais ativa na defesa dos povos indígenas, dos direitos dos povos que estão ameaçados. Mas por outro lado, ainda bem que existem esses bispos, que têm uma repercussão importante e ajudam a uma sensibilização maior em relação a essa causa.
Hoje, sobretudo através das redes sociais, onde muitas pessoas se sentem no direito de falar o que querem, os ataques que sobretudo eles estão recebendo. Como a Igreja poderia combater essa realidade? Vale a pena combate-lo? Tem que ser combatida?
Eu acho que tem que ser combatida e tem que demostrar nessa abordagem esse slogan, a causa indígena é a causa de todos nós. Não é só o que está em jogo o futuro dos povos indígenas, é o futuro de toda a humanidade. E os povos indígenas acabam tendo um papel relevante a partir da sua diversidade e também da sua ação em defesa dos seus territórios, e da forma como usam coletivamente os recursos. Traz um resultado importante em termos da preservação do futuro de todos nós. É uma riqueza importante de conhecimentos acumulados que inclusive deveria nos inspirar no sentido de pensar de forma mais a longo prazo. As vezes os povos indígenas são tachado de serem imediatistas, na verdade eles não são imediatistas, sua forma de organização, eles dão conta de uma perspectiva de futuro a longo prazo, que a nossa sociedade infelizmente não se atenta para isso.
Quais são as perspectivas de cara ao futuro para os povos indígenas brasileiros?
Elas passam necessariamente pela garantia dos seus territórios, não tem futuro minimamente digno para os povos indígenas sem a garantia dos seus territórios, porque toda a reprodução, tanto física como cultural, ela se dá no espaço concreto de seus territórios. Você imaginar os povos indígenas sem territórios é evidentemente pensa-los de forma muito pobre, tanto materialmente como espiritualmente, a questão fundamental são os territórios. Por outro lado, o respeito a essa diversidade e a suas culturas, a suas próprias formas de vida, que sofrem hoje com o preconceito, com o racismo, presente nessa onda das redes sociais. Você percebe que a discriminação dos povos indígenas é muito forte em alguns setores, inclusive nesses setores que apoiam o governo brasileiro.
Diante dessa realidade, qual é importância da figura do Papa Francisco?
O Papa Francisco tem sido uma esperança para todos, acho que em termos globais é uma voz com autoridade moral e que tem sensibilizado muita gente. Então, o papel dele tem sido fundamental no sentido de reforçar uma outra perspectiva para a Amazônia, uma outra perspectiva para a Igreja, uma outra perspectiva de organização global, e isso que também nos fortalece muito na nossa luta enquanto CIMI, enquanto aliados dos povos indígenas.
Quais são as esperanças de cara ao futuro?
Está difícil de enxergar muita esperança hoje, a esperança está muito concentrada na capacidade de mobilização dos povos, eles estão demonstrando isso. Agora tem a Marcha das Mulheres Indígenas, aqui no Amazonas vai ter a marcha do FOREEIA (Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas), agora em agosto, e outra prevista em dezembro, delegações indígenas indo para Brasília, não deixando quieto, buscando canais. Essa vitalidade do movimento indígena é a grande esperança, vai resistindo e de fato você não enxerga os povos indígenas para baixo, todos preocupadíssimos, mas dispostos a lutar, a resgatar seus direitos e a possibilidade de construir seus projetos de futuro.
O Sínodo para a Amazônia gera esperança em relação com a defesa dos povos indígenas?O processo já gerou bastante expectativa, acho que só o fato de toda a preocupação de escuta-los, de sua participação em todo o processo. A expectativa grande é que o que sair agora de Roma, da assembleia dos bispos, possa ser uma ferramenta importante de defesa dos direitos desses povos, da defesa de sua vida. E também seja uma postura de aprendizado com esses povos, de caminhar juntos, de nos enriquecermos mutuamente