Esse texto se propõe muito mais a provocar um debate do que afirmar verdades. Também parte do lugar social em que me encontro como leigo católico em uma grande arquidiocese brasileira. Desde já peço que me interpelem caso eu esteja equivocado.
Sou de um tempo onde podíamos aprender que a liturgia é uma forma de tornar Deus concretamente presente no meio do seu povo. Logo, o culto católico poderia, sem esvaziar o sentido transcendental (místico-espiritual) de sua natureza, trazer presente elementos concretos da vida das pessoas para a celebração eucarística. Eram o começo dos anos 1990 e eu estava começando minha caminhada em grupão de jovens em processo de conversão para um núcleo de Pastoral da Juventude.
Nos foi ensinado que o papel de qualquer momento litúrgico, desde a missa, passando pelas celebrações iniciais de grandes encontros até o uma pequena oração em um grupo pequeno era fazer as pessoas rezarem. Era uma missão importante, ajudar as pessoas a se conectar com o sagrado, se colocarem na presença do Deus Altíssimo. Eram tempos de maior simplicidade ritual na Igreja. Bastava uma simples túnica e a estola para sabermos quem era o sacerdote.
Naquele tempo não havia coroinhas de batina ou túnicas aos montes. Nós éramos simplesmente acólitos. E com nossas roupas, digamos juvenis. Mais importante que as formalidades rituais, era aproximar crianças e adolescentes da liturgia e do altar. Eu aprendi a “acolitar” ainda na catequese de perseverança na segunda metade anos 80. Aprendi com outros adolescentes, sob a supervisão dos meus catequistas de perseverança os principais elementos da celebração, o seu significado. E fazendo junto, diga-se.
Pessoalmente, aquilo tudo foi uma forma de descortinar algo muito abstrato e distante na minha cabeça pré-adolescente, tornando todos aqueles gestos e rituais algo vivo, com profundo significado concreto para minha vida na juventude. Mais do que devoção ou cumprimento burocrático de rubricas, celebrar se tornou algo espontâneo, com grande riqueza simbólica. Aliás, naquele tempo a gente descobriu que o símbolo não precisa ser explicado. Ele fala por si mesmo. E como…
Nos preparávamos também para as leituras. Ensaiávamos mesmo. Já no grupo de jovens, percebemos que a Liturgia não passava apenas pelo serviço do altar e das leituras da missa. Preparávamos comentários introdutórios a cada momento das leituras e na ação de graças, incluíamos uma ou duas preces antes do ofertório e fazíamos um belo convite à comunhão.
A equipe que preparava a liturgia dialogava com a turma da música, que selecionava os cantos conforme o tempo litúrgico, a festividade em questão ou com as leituras. Antes de começar a missa se procurava ensaiar as músicas com a assembleia. Quando se introduzia um novo canto, antes de tocá-lo na missa procurava-se ensinar as pessoas. As folhas de cantos eram realmente usadas nas celebrações.
Embora quem cantasse ao microfone tivesse voz potente, as canções litúrgicas eram executadas de forma a permitir que todos cantassem. Mesmos os muito desafinados, como o autor dessas linhas. O importante era fazer as pessoas cantar. Afinal, quem canta reza duas vezes, diziam os/as catequistas de primeira eucaristia daquela época. Nas missas com crianças, ainda se faziam gestos durante as músicas. Que grande sacada pedagógica! A molecada ficava mais concentrada, aprendia as músicas de forma lúdica e a própria missa continuava o trabalho catecumenal. Genial!
Obviamente que se cometiam erros. Afinal, infalível apenas Deus. Mas se aprendia com os erros, sobretudo para que as celebrações litúrgicas tivessem um caráter eminentemente comunitário. Contudo, em nossos tempos atuais, juntar as pessoas em torno de uma prática de devoção, de um evento religioso de massa ou da mesa do altar nem sempre significa fazer de um grupo uma assembleia reunida. Muitas vezes as pessoas estão juntas, mas não reunidas porque cada está imerso em seu próprio louvor, sem se conectar a quem está do seu lado, que por sua vez também está do mesmo jeito. Estão juntos, mas cada um é uma ilha…
Enfim, era canto pastoral de fato, cuja finalidade era enriquecer uma liturgia que se propunha fazer o povo rezar junto de verdade. Muito diferente de hoje em dia, não era palco para vozes arrastadas e melodiosas fazerem seus solos nos refrões, cantando suas músicas nos tons mais agudos possíveis. E nem todo mundo consegue acompanhar, nesse caso… Cantam e tocam com devoção e contrição, sem dúvida. Não podemos dizer que não há amor no que fazem.
Mas é preciso perguntar se ajudam a assembleia a rezar nas liturgias? Sim, porque parcela significativa desses cantores ou bandas estão em êxtase em seus louvores e seus solos musicais… E muitas vezes parecem desligados de todo o resto da celebração. Alguns inclusive dão seus acordes de olhos fechados.
Tem-se a impressão que sequer conversam com os responsáveis pela liturgia, pelos comentários da missa. Ensaiam exaustivamente para terem as vozes mais bonitas e serem os mais afinados. Mas são autorreferenciais, reflexo de uma Igreja voltada para si própria, como diria o Papa Francisco. O caráter comunitário da celebração eucarística se esvazia.
Dão a impressão que o objetivo é fazer todo mundo entrar no seu próprio êxtase personalizado. Não fazem o canto (será que podemos chamar de pastoral?) produzir vínculo entre as pessoas. Os indivíduos estão juntos na missa, mas parecem isolados em sua subjetividade religiosa, em sua devoção pessoal. Cantam louvores, mas não cantam a vida em forma de louvação…
As músicas nem sempre estão em sintonia com a mensagem das leituras ou com o tempo litúrgico. Salmos são cantados no canto de comunhão. E louvores são tocados no canto das ofertadas ou na aclamação ao Evangelho. Isso sem contar o conteúdo de algumas letras. Numa delas Jesus vira o filho da “Rainha” e o sentido eucarístico de um canto de comunhão se esvazia. Honestamente, existem músicas do cancioneiro popular que são muito mais litúrgicas do que muita coisa que se canta nas missas atualmente.
Dessa forma, nos deparamos com equipes de música, bandas e “ministérios” afinados, ensaiados, mas presos em sua própria devoção e louvor. Às vezes se distribuem folhetos com músicas que sequer são cantadas. Ensaios? Nem pensar! Se você não sabe as músicas, fica sem cantar porque se perdeu a preocupação de ensinar as músicas e de fazer a assembleia reunida cantar em coro. Ou você os segue nas redes digitais ou assiste as tevês católicas para aprender as músicas. Ou fica sem cantar…
Infelizmente, isso acontece até com bandas e equipes que se orientam em uma perspectiva mais progressista e libertadora. Vozes e instrumentos afinados, mas em tons inalcançáveis para os pobres mortais que estão na celebração litúrgica. Desconexão com outros elementos da liturgia. Falta de articulação com quem pensa as celebrações litúrgicas.
Todavia, seria leviano afirmar que isso tudo é orquestrado pelos próprios músicos. Mesmo que identifiquemos alguma dose de vaidade pessoal (e ela existe, mas não é esse o maior dos problemas) nesse fenômeno. Dessa forma, também temos a obrigação de reconhecer que são pessoas que certamente dedicam seu tempo generosamente, e fazem disso um gesto de fé.
Se queremos entender amplamente o que presenciamos atualmente na liturgia, não podemos “fulanizar” o problema, apontando culpados. A questão é bem mais ampla. Isso tudo é efeito de um modelo de Igreja. Voltado para si, autorreferencial e fechado em si mesmo, esse modo de ser Igreja produziu uma liturgia à sua imagem e semelhança.
Consequentemente, se cria uma espiritualidade e uma devoção intimista, baseada não poucas vezes no êxtase religoso e na catarse. Busca-se também através da música o caráter mágico do sagrado, a cura instantânea, a libertação apenas do espírito. Com efeito, isso manifesta frequentemente na liturgia em novas formas celebrativas.
Assim, este fenômeno não um elemento isolado de um aspecto da liturgia, que é o canto pastoral. Embora certamente se conheça de cor as rubricas rituais previstas no Missal Romano, falta uma compreensão mais profunda do sentido da liturgia. Ao invés de tornar Deus presente no meio do seu povo, pretende-se elevar o povo até Deus pela liturgia. Nesse caso, falta percepção sobre o significado maior da cruz, que possui duas hastes e não está somente apontada para os céus.
Então o que assistimos hoje em muitos templos católicos é a expressão de uma forma de cristianismo desconectado da vida, e da história. Por isso tantos cristãos não vem nenhuma ligação entre suas crenças e sua ação como cidadão. Ou quando é diferente, o fazem agindo sob a marca do moralismo, da intolerância, da hipocrisia social e da desonestidade intelectual. E tudo isso não os impede de estarem nas celebrações litúrgicas, louvando a Deus.
Um outro aspecto litúrgico, que evidencia tal modelo de Igreja é uma certa hipertrofia do rito. Isso se dá pelo exagerado apelo aos paramentos usados. Há um uso superlativo de panos e vestes, as vezes em lugares muito simples. Aqui fica evidente um dos grandes males da Igreja em nossos dias, segundo o Papa Francisco: o clericalismo.
Toda essa profusão de elementos serve muitas vezes somente para afirmar o poder clerical. E muitas vezes apenas afasta os mais simples do contato com Deus, reforçando relações de dominação, enfatizando o caráter hierárquico da Igreja. Isso não se reflete apenas na liturgia, mas no uso de batina, de gola clerical e de outros sinais externos da condição sacerdotal em toda e qualquer ocasião.
Ao mesmo tempo, somam-se a esses elementos uma leitura rigorista das normas litúrgicas. É possível ver adolescentes defendendo essas regras como se fosse cruzados medievais no campo de batalha, acreditando que estão salvaguardando a fé. “É para fazer assim porque tem que ser feito como o padre disse e pronto!” .
Os gestos individuais, a postura corporal daqueles que servem o altar (coroinhas, seminaristas e por vezes o próprio sacerdote) adquirem matizes de extrema rigidez. Para bons observadores, soa como se fosse uma teatralização. É reflexo de uma triste caricatura porque os envolvidos perdem sua vivacidade. Às vezes parecem bonecos de cera, sem expressão. Mãos unidas, mas parecem sem sentimento, o olhar congelado, imóvel. Não se trata de uma atitude contemplativa ou de devoção, mas obediência a um mero preceito.
Enfim, são dois lados da mesma moeda. Expressões de um modelo eclesial que hoje domina a maior parte do catolicismo brasileiro. Apesar da hegemonia, não foram capazes de evitar a perda de capilaridade social da Igreja e nem a redução dos fiéis.
Na liturgia, a excessiva formalidade dos preceitos se transformou em burocracia do rito. Por fim, o caráter intimista do canto pastoral o desconecta tanto do sentido comunitário da celebração eucarística quanto da vida concreta das pessoas. O louvor necessário nestes tempos, como diz a música de Zé Vicente, é o “louvor que nasce da história, do dia-a-dia do povo…”
*Jorge Alexandre Alves é Sociólogo e Professor do IFRJ. Possui mestrado em Educação pela UFRJ. Foi catequista do Crisma, foi da Pastoral da Juventude e hoje atua no Movimento Fé e Política.
Foto de Capa: Teto da Paróquia Divino Salvador em Piedade – RJ.