Cinco portas para entrar na Primeira Carta de João
Por Carlos Mesters e Francisco Orofino
A Primeira Carta de João é um livro muito desconhecido. Quase não é usado nas celebrações litúrgicas. Entrar na Primeira Carta de João é como entrar numa casa desconhecida. Mas o próprio João nos deixou algumas indicações para que a gente possa entrar no texto e nos sentirmos em casa.
João abre cinco portas para entrarmos na Carta e conhecê-la de perto
As cinco portas abertas mostram cinco aspectos atraentes da vida em comunidade: o convite inicial para viver em comunhão (1Jo 1,1-4); a luz que a fraternidade abre para nós (1Jo 2,10-11); a prática da justiça que nos faz nascer de Deus e para Deus (1Jo 2,29); a vivência do amor que torna visível o amor de Deus (1Jo 4,7-9) e o conhecimento do Deus Verdadeiro que já é o começo da Vida Eterna (1Jo 5,20).
1ª porta:Viver em Comunhão (1Jo 1,1-4)
O que João quer indicar quando usa a palavra comunhão? Todos nós, ou quase todos, temos no coração algumas experiências que marcam nossa vida. Em alguns membros da comunidade estas experiências já vividas eram tão fortes que eles queriam partilhá-las com os outros. O próprio João diz: “Aquilo que vimos e ouvimos, nós agora o anunciamos a vocês, para que vocês estejam em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 1,3).
Trata-se da experiência bem concreta que ele, João, teve durante aqueles três anos de convivência com Jesus na Galileia. Ele mesmo a descreve como “aquilo que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e o que nossas mãos apalparam” (1Jo 1,1). Foi uma experiência profunda que se transformou em Boa Notícia; notícia tão boa, que ele quer partilhá-la com os outros. Este é o motivo que fez nascer a primeira Carta de João: o desejo de partilhar com os outros uma grande alegria. É uma experiência de vida nova tão forte, que João a experimenta como Vida Eterna. Ele diz: “Porque a Vida se manifestou, nós a vimos, dela damos testemunho, e lhes anunciamos a Vida Eterna. Ela estava voltada para o Pai e se manifestou a nós” (1Jo 1,2).
Esta nova experiência de vida marcou-o de tal maneira e lhe deu tanta alegria, que João quer partilhá-la com os outros. Ele diz: “Essas coisas, escrevemos para vocês, a fim de que a nossa alegria seja completa” (1Jo 1,4). João já tem a alegria, mas sua alegria só será completa quando ele puder comunicá-la aos outros e quando todos tiverem a mesma alegria que ele já está vivendo. Até hoje é assim: aquilo que cria e mantém a comunidade na alegria da comunhão é esta partilha fraterna das experiências pessoais que cada um tem de Jesus: Jesus de Nazaré, o Jesus dos evangelhos, morto e ressuscitado por nós.
2ª porta:Viver na Luz (1Jo 2,10-11)
Duas palavras com sentido oposto, ligadas entre si, marcam a primeira carta de João: Luz e Trevas. As duas se excluem mutuamente: “Aquele que diz que está na luz, mas odeia seu irmão, está nas trevas até agora” (1Jo 2,9). Para João, viver na luz de Deus significa viver os mandamentos de Deus. Ele escreve: “Aquele que diz: “Eu conheço a Deus”, mas não guarda os seus mandamentos, é mentiroso” (1Jo 2,4).
A carta de João usa 12 vezes a palavra trevas e 14 vezes a palavra luz. A luz que percebo me faz entender as trevas, e as trevas que me envolvem me fazem entender a luz. A opção pela luz é viver os mandamentos. Observando os mandamentos, enfrentamos as trevas e vivemos na luz (1Jo 2,4.9).
João evoca a descrição da criação da luz com que Deus enfrentou e venceu as trevas. A luz que Deus criou no primeiro dia da criação e que agora ilumina nossa vida, faz entender como eram as trevas do caos de antes da ação criadora de Deus. A bíblia fala das trevas que cobriam o abismo e sugere um oceano escuro ameaçador, onde a vida não é possível e onde a morte reina e mata tudo (Gn 1,2). Mas logo no primeiro dia da criação, Deus vence as trevas e cria a luz. “Deus disse: “Que exista a luz!” E a luz começou a existir. Deus viu que a luz era boa. E Deus separou a luz das trevas: à luz Deus chamou “dia”, e às trevas chamou “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia” (Gn 1,3-5).
E o poder criador de Deus é tão grande a ponto de transformar as trevas da morte em instrumento de vida. Pois Deus não eliminou as trevas, mas as controlou; reduziu a sua extensão e o seu poder. As trevas que antes ocupavam todo o espaço e todo o tempo, impedindo o nascimento da vida, agora servem à vida e recebem o nome de noite. A noite faz um bem muito grande, pois permite o descanso. Favorece a recomposição das forças. E ensina como enfrentar as trevas. Quem habita nas trevas e com elas se identifica é o maligno, é o satanás. Devemos aprender a enfrentar o maligno da mesma maneira como Deus enfrentou as trevas. Ele venceu as trevas e as obrigou a servir à vida.
3ª porta: Viver na Justiça (1João 2,29)
A palavra justiça ocorre 4 vezes na primeira carta de João; a palavra justo ocorre 5 vezesA palavra pecado, que é o oposto da justiça, ocorre 22 vezes.Todo mundo quer viver numa sociedade justa e fraterna. É um anseio geral. Apesar das dificuldades e resistências, toda sociedade quer ser construída sobre a justiça e a igualdade.
Hoje, para nós, a palavra justiça diz mais respeito à convivência igualitária e à retribuição justa entre as pessoas e os grupos da sociedade. Ela acentua a dimensão social. Na carta de João, a palavra justiça diz mais respeito ao nosso relacionamento com Deus. Quando Deus, na sua bondade, escolheu o povo, ele o justificou, tornou-o justo. Paulo pensava tornar-se justo diante de Deus através da observância da Lei. Ele queria merecer a justiça. Deus fez saber a ele que nós não podemos merecer a justiça. Ela é um dom de Deus. É Deus quem nos justifica, nos faz justos, graças à paixão, morte e ressurreição de Jesus. É assumindo esta justiça através da fé em Jesus que vencemos o pecado e nos tornamos filhos de Deus pela graça do batismo
Como vencer o pecado? Que pecado?João faz distinção entre “pecado que conduz à morte” e “pecado que não conduz à morte” (1Jo 5,16-17). Pecado que conduz à morte é aquele pecado que nega o projeto de Deus, nega Jesus, nega tudo, e mata o batismo. O pecador rompe a fraternidade e se coloca fora da comunidade. É deste pecador que Jesus dizia “que seja tratado como se fosse um pagão ou um publicano” (Mt 18,17). O pecado que não conduz à morte se refere aos pecados que ofendem a fraternidade, mas não rompem com Deus, nem negam o projeto de Jesus; o pecador não se coloca fora da comunidade, mas se arrepende, pede perdão e se reconcilia com Deus e com os irmãos.De todos estes pecados João diz: “Se dizemos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a Verdade não está em nós. Se reconhecemos os nossos pecados, Deus, que é fiel e justo, perdoará nossos pecados e nos purificará de toda injustiça” (1Jo 1,8-9). É Deus quem nos justifica e nos purifica.
4ª porta:Viver no amor (1Jo 4,7-9)
A palavra que mais aparece na 1ª carta de João é Amor. Hoje, não existe palavra mais desgastada do que a palavra amor. Serve para tudo! Amor é a palavra que mais aparece nas propagandas. Será que o amor da propaganda na TV é o mesmo amor de que fala Jesus quando diz: “Não existe amor maior do que doar a vida pelos amigos”? (Jo 15,13). Qual o ideal de amor que a sociedade e os meios de comunicação apresentam? E qual o ideal do amor que nos é apresentado pela carta de João?
Deus é amor. Não existe frase bíblica mais conhecida. A Primeira Carta de João usa a palavra amor 18 vezes e o verbo amar aparece 25 vezes. O amor é o eixo principal da carta. É a avenida central de onde partem ou na qual desembocam as ruas laterais. O amor de Deus é a raiz de tudo. A experiência do amor de Deus está na raiz da Bíblia. Ao longo das muitas crises que ocorreram durante a história do povo de Deus, é sempre a redescoberta do amor de Deus que fazia o povo renascer e retomar a sua caminhada. No cativeiro da Babilônia, quando tudo parecia definitivamente terminado, a crise da fé levou o povo a dizer: “YHWH me abandonou, Deus se esqueceu de mim” (Is 49,14). É como se dissesse: Nós rompemos com Deus, por isso Deus rompeu conosco! Está tudo terminado. É melhor seguir os deuses dos outros povos.
Foram os profetas que ajudaram o povo a redescobrir o amor. O amor de Deus por nós não depende da nossa fidelidade e é maior que a nossa infidelidade. É anterior, é eterno. Por isso Deus conserva o seu amor por nós. Esta constante redescoberta do amor de Deus nascia tanto da meditação sobre os fenômenos da natureza, como da experiência do amor das mães. O profeta Jeremias redescobriu o amor de Deus no movimento do sol que nasce todos os dias, independente da nossa fidelidade ou infidelidade. Deus não nos abandona: o nascer do sol é a prova: “Assim diz Javé, aquele que estabelece o sol para iluminar o dia e ordena à lua e às estrelas para iluminarem a noite, aquele cujo nome é Javé dos exércitos: quando essas leis falharem diante de mim, oráculo de YHWH, então o povo de Israel também deixará de ser diante de mim uma nação para sempre!” (Jr 31,35-36; cf. Jr 31,35-37; 33,19-21.25). Isaias redescobriu a grandeza do amor de Deus a partir do amor das mães pelos seus filhos. Ele escutava Deus dizendo: “Pode a mãe se esquecer do seu nenê, pode ela deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas? Ainda que ela se esqueça, eu não me esquecerei de você. Veja! Eu tatuei você na palma da minha mão; suas muralhas estão sempre diante de mim” (Is 49,15-16). Os profetas diziam ao povo: “Sim, nós rompemos com Deus, mas Deus não rompeu conosco! Ele nos diz: “Eu amei você com amor eterno, por isso conservei meu amor por você” (Jr 31,3; cf. Is 49,15)
Esta experiência do amor eterno de Deus tem a sua revelação maior na pessoa de Jesus. Pelo seu jeito de viver, de ensinar e de agir durante aqueles trinta e três anos ele revelou como Deus nos ama. A sua última oração antes de ser preso é como o seu testamento que nos traz as palavras de amor com que Jesus entrou na morte e agora está diante do Pai (Jo 17,1-26). A síntese deste amor infinito é a 1ª Carta de João.
5ª porta:Viver no Deus Verdadeiro(1Jo 5,20)
Todos nós assistimos à televisão, ouvimos as notícias, lemos jornais. Mas a gente não consegue acreditar em tudo que se ouve ou se diz. Existe muita manipulação das notícias: apresenta-se como verdade aquilo que na realidade é mentira. Verdade gera vida. Mentira gera morte. Como viver este conflito entre verdade e mentira numa sociedade como a nossa? Viver na verdade é Viver em Deus, é viver em Jesus, pois Jesus é a verdade. Como viver a verdade quando a mentira é apresentada como a verdade?
Deus é a verdade. Na conversa com Pilatos, Jesus disse: “Eu nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Quem é pela verdade escuta minha voz” (Jo 18,37). Já naquele tempo, muita gente não conseguia escutar a voz da verdade, pois a sua mente tinha sido pervertida pela ideologia dominante da época. Mesmo querendo, não conseguiriam enxergar a verdade. Diz o salmo: “Ele se enxerga com olho tão enganador que não descobre, nem detesta o seu pecado” (Sl 36,3). O livro de Sabedoria repete a mesma constatação: “É a maldade deles que os deixa cegos” (Sb 2,21). O profeta Isaías já dizia a mesma coisa a respeito de um fulano que carregava um falso deus nas suas mãos: “Esse homem se alimenta de cinza. Sua mente enganada o iludiu, de modo que não consegue salvar a própria vida e nem é capaz de dizer: “Não será mentira isso que tenho nas mãos?” (Is 44,20; cf. Os 5,4). E o apóstolo Paulo comenta: “Tudo é puro para os puros; mas nada é puro para os impuros e descrentes, porque a mente e a consciência deles estão corrompidas. Eles dizem que conhecem a Deus, mas negam isso com os próprios atos, pois são cheios de ódio, desobedientes e incapazes de fazer qualquer obra boa” (Tt 1,15-16).
Para nós cristãos, Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida. Na Última Ceia, Tomé disse a Jesus: “Senhor, nós não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?” Jesus respondeu: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida!” (Jo 14,5-6). Sem caminho não se anda e se está perdido; sem verdade, se está na mentira; sem vida, se está na morte. Por isso, Jesus dizia às autoridades dos judeus: “O pai de vocês é o diabo, e vocês querem realizar o desejo do pai de vocês. Desde o começo ele é assassino, e nunca esteve com a verdade, porque nele não existe a verdade. Quando ele fala mentira, fala do que é dele, porque ele é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44). E Jesus respondia a Pilatos e a todos nós:“Eu nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é pela verdade ouve a minha voz” (Jo 18,37).