Nossos filhos sempre nos ensinam
Em qualquer tempo e idade.
Esse foi soprado pela nossa Clara.
Este texto que me tirou da cama na madrugada trata de um olhar muito particular sobre a pandemia que assola nosso mundo, mas que nessa abordagem se restringirá à realidade que me rodeia se estendendo ao máximo ao nosso país.
A pandemia que vivemos é uma experiência única para os que atualmente vivem na terra. A pandemia anterior a essa é datada de 1918, há 102 anos atrás, impossibilitando termos em nosso meio alguém que tenha sobrevivido a ela. Mesmo que tenhamos pessoas com essa idade ou alguns anos a mais, esses seriam recém nascidos ou bem pequeninos na época, e talvez tenham vivido em lugares que sequer a pandemia tenha passado.
Meus pais, cuja a idade é de 94 anos, dizem a todo momento que nunca viveram ou viram falar de algo parecido. Isso se explica pela idade, mas também pelo local onde viveram a infância, o interior da Bahia, e pela falta de acesso às noticias, sejam elas escritas ou via rádios.
Podemos dizer então, que estamos vivendo o que costumamos chamar, popularmente, de experiência ímpar, para qual não existe um par ou semelhança com outra.
Tendo dito sobre a singularidade dessa experiência vivida por nós nesse momento pandêmico, outras singularidades se apresentam derivadas da complexidade dessa realidade. Umas das singularidades é a forma como tem sido tratada a pandemia no nosso país e, por conseguinte, nos estados e municípios.
Nesse tempo específico vivemos um momento de reabertura das atividades econômicas e sociais. Lembrando, entretanto, que nunca tivemos fechados totalmente. Mas o que é importante tratar nesse aspecto específico é como a população e as instituições se comportam diante desse novo cenário de retorno à chamada vida “normal”. E é sobre esse ponto que me é sugerido escrever esse texto.
Nosso comportamento é regido por leis visíveis, palpáveis e com certa logicidade, mas também por outras que aparentemente nos são invisíveis, inexistentes e, em alguns casos, incompreensíveis. Longe de querer afirmar aqui algo do campo de alguma sobrenaturalidade. Pelo contrário, trato aqui de algo muito natural.
Antes de continuar falando sobre o que chamo de leis naturais, quero trazer um exemplo de infância que me veio quando ainda lutava entre o sono e a provocação de escrever esse texto. Quando criança num bairro pobre da periferia da cidade onde moro costumávamos ter poucos brinquedos. Um brinquedo muito presente era a bola de plástico. Objeto barato e de fácil acesso. Quando, porventura a bola furava, colocávamos uma fita adesiva ou, na maioria das vezes, um esparadrapo. Isso acontecia dezenas de vezes com a mesma bola. Outros furos e o alargamento do furo anterior, mesmo tendo sido tapado, o que dizia da ineficácia do “curativo”. Até que a bola não resistia, murchava de tal forma que nada mais podia ser feito. Havíamos perdido o brinquedo e a brincadeira tão importante para nós naquelas pequenas possibilidades de diversão e lazer.
Por que me veio essa historia de tempos tão passados? Acredito que porque ela nos guia para uma boa analogia que deixe mais claro o que estou chamando de “lei invisível”. É como o ar na bola escapando da bola. Era um pequeno furinho que um pedaço de esparadrapo dava conta. Mas o uso insistente nas brincadeiras vai fazendo surgir novos furinhos e alargando os furos anteriormente tamponados. Ninguém via como acontecia. Só víamos o acontecimento. E, muitas vezes, só nos dávamos conta quando a bola estava totalmente vazia e sem possibilidades de regeneração, tão entretidos que estávamos na brincadeira.
O fato das normas de isolamento social estarem sendo flexibilizadas, os estabelecimentos abertos e a vida social retornando às atividades, são furos nessa bola, sem que, assim como as crianças, se perceba logo o dano. Possivelmente, só poderá ser visto quando a bola estiver totalmente vazia.
Onde poderia estar a invisibilidade desses furos, já que é noticiado em ampla rede de comunicação as decisões de cada abertura e flexibilização? Está no ar saindo da bola sem que a gente veja. Na medida em que a aparência de “normalidade“ vai sendo construída com as reaberturas, ao mesmo tempo vai sendo construído dentro de mim, sem que eu perceba, um certo atenuar da realidade, dos riscos da doença e de sua contaminação e, talvez o mais forte em nós, o desejo de retornar a vida como era antes.
Os governantes, quando por uma imensa irresponsabilidade decidem permitir a reabertura do comercio, voltar às atividades produtivas, sociais, de lazer e religiosas, eles estão mandando um recado para esse desejo. Eles estão fazendo o furinho na bola. E todos nós somos atingidos por esse recado “não dito”.
Fico olhando para os jovens, incluindo meus filhos, e me perguntando: quantos bois são necessários matar para resistir aos encontros dos amigos, a ida aos bares, ao futebol, aos churrascos e festas? Todas essas atividades já estão acontecendo e os chamando para participar. Falo isso dos que estavam ou estão em isolamento. Porque existe um grupo que nunca fez isolamento algum, burlou o que pode e com muita maestria, diga-se de passagem, todas essas normas. E muitos desses não desenvolveram a doença (o que não significa que não ajudaram a espalhar a doença). Este fato acabou colaborando na crença de que eles, os jovens, são “imunes” e a que essa doença tem baixa letalidade.
Penso agora no vídeo que circulou esses dias dos “inocentes do Leblon”. Entre as falas captadas estavam a pouca importância com essa doença, sua disseminação e letalidade. Aparentemente, nada diferente dos outros lugares que abriram seus bares para a garotada. Mas, a diferença existe não quanto ao comportamento e sim quanto às consequências. Para onde vai essa garotada do Leblon caso seja infectada? E a quem contaminará? E para onde vão os jovens da Baixada, por exemplo, caso ocorra o mesmo? Que tipo de assistência terão? E ainda, quantos serão os contaminados por eles caso fiquem doentes? Dizia o rapper Emicida em uma entrevista, o que já era percebido por nós: a grande letalidade desse vírus é a desigualdade social.
Existe um inconsciente operando e regendo a população, tornando muito difícil para todos resistir ao seu encanto. Quem tem conseguido se manter consciente tem sido como o personagem Ulisses, amarrado no mastro de seu navio, pelos seus marinheiros. Por sinal, essa analogia serve também para dizer que é a vida comunitária e fraterna, mesmo que à distância, que tem sido para nós, os marinheiros de Ulisses, a corda que nos amarra ao mastro desse navio que navegamos.
Quando o bem cede ao mal, mesmo que um pouquinho como disse no título desse texto, esse inconsciente ganha muita força e as cordas se tornam fracas e a bola murcha.
Na dedicação de evitar aqui qualquer tipo de julgamento, olhemos. Quando os pais cedem aos filhos suas brincadeiras na rua, quando os jovens cedem ao desejo de se encontrar , quando as famílias cedem as festividades, quando as escolas cedem às aulas presenciais, quando os templos religiosos cedem a abertura de suas celebrações, permitimos que os furinhos se alarguem e que a anormalidade tome lugar na realidade. E, em última instância, vamos abrindo mão do bem.
Quero me ater nesse momento à possível abertura dos templos religiosos, especificamente na igreja católica, na qual pratico a minha fé. Em alguns lugares já reabriram, mas em outros, como em minha cidade, ainda permanecem fechadas em via de reabertura a partir de um protocolo.
As religiões, e digo especificamente da minha, são espaços de cultivo e preservação da vida, dom maior que Deus nos deu: vai e escolhe a Vida. Somos guardiões da vida. Por ela devemos lutar e defendê-la de qualquer ameaça. Seja ela do campo objetivo e material, ou seja em sua imaterialidade e sacralidade
Nada justifica se abrir para o mal, mesmo que seja um pouquinho. Mesmo que este esteja revestido de bem. O Bem é Deus e se estamos ao seu lado é a esse Bem que devemos servir. São 67.113 pessoas, com nome e sobrenome, criaturas do Altíssimo que foram ao seu encontro precocemente. São milhares de pessoas e famílias enlutadas, chorando seus mortos ou lutando pela vida em um hospital. É a Páscoa de Nosso Senhor vivida na nossa gente e de forma mais cruel nos pobres e pequeninos, os por Ele amados.
A hora é de defender a vida, de lutar por ela, de denunciar o que vem acontecendo como nosso povo diante desses governantes. É hora de gastar toda nossa energia lutando pelo Reino e amparando os sofredores, amarrando nosso povo ao mastro para livrá-lo do canto da sereia da dita normalidade, indo contra a maré nesse mar nebuloso que envolve os fiéis em outra fidelidade apenas com a aparência de boa.
INEXISTE protocolo algum que possa proteger nosso povo indo às celebrações. Isso é uma ilusão e faz parte da sustentação da anormalidade como realidade. É um reforço nesse inconsciente coletivo, nessas trevas que se abateram sobre nós e que agora se disfarça de luz. No entanto, não devemos nos deixar enganar. Precisamos ser luz de verdade. Nos manter acordados e de olhos bem abertos diante da noite escura, mesmos que nossos olhos pesem clamando pelo sono. Precisamos ajudar nosso povo a entender a gravidade do momento, que nada passou e que vai demorar a passar. Se flexibilizamos, a mensagem que estamos enviando, mesmo com as melhores intenções, é que o pior passou e que a gravidade arrefeceu.
Entendo as dificuldades de natureza econômica de manutenção da instituição e de todos que ganham seu pão trabalhando nas atividades da igreja. Mas, assim como tem sido com o povo mais pobre, a instituição haverá de encontrar caminhos de solidariedade que possam permitir a sua subsistência.
É possível que haja também algo de natureza religiosa nos que diz respeitos às outras denominações cristãs que já estão realizando seus cultos, e, algumas, diga-se de passagem, sem nenhum protocolo, e outras ainda, que sequer fecharam. Mas isso não pode nos fazer sair do caminho da verdade. Lamentamos por esses irmãos e pelo mal que possam ter realizado, mesmo querendo e pregando o bem. E, se ao final desse tempo formos poucos, temos o consolo e a força de Nosso Senhor: não tenham medo pequeno rebanho.
O momento é ainda de manter a bola fechada, sem furos ou com estes bem pequeninos que possam ser tamponados. Mas podem me dizer: tudo já está aberto. Nós não somos esse tudo. Nós fomos chamados a ser a voz que clama no deserto. É no deserto o nosso chamado. É na contramão que Jesus foi para ser fiel à escolha pela Vida e, por isso, atravessou seu deserto com altivez. Em fidelidade àquele que seguimos mantenhamos nossos corações abertos e nossas portas fechadas até que tenhamos um pouco mais de segurança para nos encontrarmos em nossos templos, igrejas, capelas.
Leu Cruz
Educadora. Coordenação do Centro de Referência Patrimonial e Histórico de Duque de Caxias (CRPH/DC)
direção do Museu Vivo do São Bento (MVSB)
coordenação da Comunidade Batismo do Senhor
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