Disse o Senhor:
“De fato tenho visto a opressão
sobre o meu povo no Egito,
tenho escutado seu clamor,
por causa dos seus feitores,
e sei quanto eles estão sofrendo”.
(Ex 3,7)
A Campanha da Fraternidade 2021 é uma com+vocação à integração entre a fé cristã e a vida pessoal e comunitária, entre as reflexões e as ações concretas. A CF está presente nos caminhos cristãos desde 1960, e escolhe a Quaresma como tempo litúrgico forte para revisões de vidas, de escolhas fundamentais e escolha de novos caminhos que respondam ao apelo que chega do Evangelho, a Boa Nova de Jesus Cristo.
Cada tema escolhido para as muitas Campanhas da Fraternidade procura responder ao “clamor que vem da terra”, de forma profética. A fé cristã se expressa na resposta ativa e compromissada com cada contexto histórico, ou seja, pertence à interioridade da fé a atitude de ‘sair para ir ao encontro’ compromissado e solidário. É no interior desta dimensão da fé que cada ser humano vai compreendendo, vivenciando, encontrando com o Deus encarnado e revelado que nos interpela em cada momento da história. As CFs confirmam que sem a dimensão da encarnação na realidade histórica e comunitária, não há seguimento de Jesus, não há discipulado, pois aqui está a centralidade da fé cristã: o amor solidário.
De cinco em cinco anos, a Campanha da Fraternidade possui um caráter ecumênico, é assumida por todos os cristãos como missão evangelizadora em nosso chão comum. Chamo de com+vocação para olharmos com atenção para o conteúdo desse termo, que chama a cada um de nós, a ser comunhão, comunidade, cuidar um da/do outra/o. É o chamado de Deus a cada um de nós, a cada pessoa, a cada comunidade. Trata-se da escuta mais profunda que ecoa em nossos ouvidos, em nossos corações, e nos faz ‘sair ao encontro’, buscando proximidade, estratégias concretas para que a vida seja prioridade, especialmente em situações de desumanização, injustiça, violação dos direitos dos seres humanos e da terra.
Na Campanha atual, o tema “Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor” e o lema “Cristo é a nossa Paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Ef 2,14), parecem expressar algo que poderia ser óbvio para todos os que se preocupam com a vida como prioridade, e não apenas para os cristãos. Contudo, a CF chega como um grito e como um abraço. Um grito que nos acorde da acomodação, da cegueira coletiva, da impotência que é fomentada a cada dia pelas redes sociais e pensamentos de individualismos, intolerância. Um grito que nos desperte de práticas pastorais isoladas, de uma perspectiva subjetivista da fé que não integra com a vida e que, portanto, não é a fé de Jesus. Mas também chega como um abraço, como a confirmação de que não podemos largar as mãos de ninguém, que as igrejas, em sua função maternal, não deixam nenhuma filha, nenhum filho, fora de seu cuidado e responsabilidade ética.
Seguimos essa breve reflexão falando um pouco sobre a dimensão ecumênica das Campanhas da Fraternidade, e da própria missão herdada de Jesus.
O primeiro convite consiste revisitarmos o caminho do ecumenismo. Este foi um caminho de discernimento nas teologias das religiões, especialmente nas religiões cristãs, que resultou na compreensão de que estão no mesmo campo de fraternidade, como irmãs na fé e, por isso mesmo, caminhando de mãos dadas. Essa compreensão se desdobrou na necessidade de atitudes que a concretizem como, o diálogo, a abertura às diferenças, a cooperação, a busca de metas afins, o respeito à originalidade, a atenção e denúncia de atitudes não dialógicas ou intolerantes.
Se olharmos para o retrovisor da história, vamos encontrar os primeiros registros deste conceito – no grego oikoumene -, no século V, em Heródoto. Naquele momento, ligado à administração comunitária da terra, entre os habitantes. O termo tinha um caráter político, no sentido mais estrito do termo, um caráter de organização, de gestão, de um cuidado comum e unificador.
Nos primeiros séculos da história do Cristianismo, os primeiros concílios ecumênicos buscam a unidade na doutrina cristã. Ali foram refletidos os artigos da fé e redigido um Credo completo. Mas, é a partir do século XVI, com rupturas entre os cristãos, que o termo ganha um novo sentido e, de alguma forma, permanece até hoje: um sentido ético, de respeito à diferença e esforço de restabelecer a unidade rompida, e manutenção da atitude dialógica.
Ficamos por aqui, neste brevíssimo caminho histórico, apenas para pontuar que a trajetória das CFs Ecumênicas são respostas de fidelidade e continuidade a esse discernimento e posicionamento fundamentais.
E então, prosseguimos para um segundo convite, para enraizarmos a vivência ecumênica entre irmãs e irmãos na fé cristã sim, mas ousarmos um pouco mais: abraçarmos não apenas as profissões religiosas cristãs, mas alargarmos esse abraço reconhecendo as muitas expressões religiosas presentes na história da humanidade. Não há razão para divisões e conflitos, e sim para o diálogo e o respeito.
Mas, como podemos concretizar esse abraço, já que não se trata de uma busca teórica? Pensamos que só a vivência ecumênica vai nos revelar os caminhos concretos. Para isso é fundamental conhecemos e firmarmos a própria identidade e pertença no caminho comunitário cristão e nos abrirmos às perspectivas presentes nas demais expressões. É igualmente importante nos despojarmos de preconceitos e reconhecermos a originalidade de cada expressão já existente. E mais. Estarmos disponíveis a todas as possibilidades que podem vir, já que estamos diante de uma compreensão de que Deus é presente, atuante, movimento e assim, também, os povos em suas mais diversas linguagens e expressões.
Portanto é preciso olhar, conhecer, aproximar, criar intersecções, reconhecer pontos em comum e pontos específicos. E como se faz isso? Nas rodas, nos diálogos, nas narrativas, nas liturgias comunitárias, nos círculos bíblicos e nos círculos dos textos sagrados próprios de cada expressão religiosa.
É mais um caminho de seguimento de Jesus, é o resgate de um centramento que está presente no cristianismo, no islamismo, no judaísmo, nas tradições orientais, nas tradições indígenas, nas tradições africanas. Enfim, o centramento na dinâmica amorosa. É ela quem convoca do mais profundo de si mesmo, ao olhar que encontra o mais profundo em cada ser e, com isso, a dialogia passa a simplesmente ser.
Talvez o que esteja na origem do distanciamento seja a ideia de que conhecer é saber cognitivo, intelectual e, aqui, neste ponto, convidamos a cada uma, a cada um ao resgate de uma fonte vital: a experiência do amor.