A morte nunca sai de pauta. Em alguns momentos, como agora, nem se fala. Ela em si não é um problema. São Francisco a chamou de irmã. A Dra. Ana Claudia, especialista brasileira em medicina paliativa, escreveu um belo livro afirmando que a morte é um dia que vale a pela viver. José Saramago também escreveu uma bela obra sobre a morte: “As intermitências da morte”, na qual retrata um lugar onde, a partir de um determinado dia, não morria mais ninguém. Foi um verdadeiro caos.
Também me atrevi a escrever algo. Um capítulo de livro com o seguinte título: “Vida e morte, dois lados da mesma moeda – Uma reflexão sobre o sentido da morte”. Minha irmã mais nova, falecida aos 46 anos, deixando duas filhas adolescentes, leu o livro. Recebi-o de volta e o meu capítulo estava todo marcado. A primeira frase marcada por ela diz: “Parece que temos muita dificuldade quando precisamos encarar a nossa própria morte de frente”.
A morte é a única verdade consensual. Nem Deus tem consenso total. Da morte ninguém duvida. Todo ser vivo morre. Nascer, viver e morrer faz parte do ciclo vital. Mas se a morte faz parte do processo natural do viver, por que ela provoca tanta dor?
Sobre um tema que já inspirou altas filosofias e teologias, algumas linhas não darão conta do recado. Mas podemos olhar de um modo diferente. Podemos tentar nos ajudar a passar pelo processo sem tanto trauma.
Existe uma dimensão de tristeza na morte que é inevitável. Por isso, o luto tem um lugar fundamental. Porém, podemos passar pelo luto integrando as circunstâncias que a morte carrega ou podemos descarregar todas as nossas angústias que se podem projetar no ato de morrer. Geralmente, o desespero diante da morte se dá por algo que não está bem resolvido em vida. Um teólogo que muito me inspirou sobre este tema, Renold Blank, faz uma afirmação que em geral se tem dificuldade de entender: “quem não saber morrer, também não sabe viver”.
Em condições normais um grupo humano passa pela morte com tristeza, mas segue o processo vital buscando viver cada instante de forma a superar a interrupção dolorosa.
Mas não se pode deixar de levar em consideração que o ser humano é um ser social. Significa dizer que pode existir uma série de condicionamentos que atrapalham passar pela morte com mais tranquilidade. E aí, as coisas ficam mais complexas.
A pandemia do Coranavirus tem sido um forte condicionante. Muitas mortes poderiam ser evitadas. Sabe o que é morrer pela ausência de um cilindro de oxigênio? Em uma cidade aqui da Baixada três crianças desapareceram e até agora não foram encontradas. Recentemente duas meninas foram mortas na calçada de sua casa em bairro vizinho ao meu.
Quando meu pai morreu, 1982, aos 54 anos, não fiquei revoltado com Deus, mas sim com o sistema de saúde público. Esta morte serviu para fortalecer em mim a luta pela justiça. Aqui está a questão. A morte pode nos afogar em culpa, ou pode ser grande motivação para buscar diminuir as contradições da vida que não nos permitem passar por ela como um estágio fundamental do viver.
Se a morte de milhares de pessoas, em menos de um ano, não nos incomoda, há com certeza algo de errado em nossa humanidade. Ainda não sabemos o quanto de sequela haverá no pós Covid. Mas com certeza uma delas será a ausência do luto.
Voltemos ao começo. A morte em si não é um problema. E, para quem afirma ter fé, aí mesmo que não deveria ser. Mas muitas vezes nossa fé está carregada de concepções que obscurecem o sentido de morrer. Podemos compreender a morte como uma Páscoa Definitiva, ou como um rompimento extremamente doloroso. O caminho que Jesus de Nazaré ensina é que não há ressurreição sem cruz. Podemos passar pela cruz deixando-nos sucumbir por ela, ou podemos enfrentá-la sabendo que ela é a porta da ressurreição.
Não podemos pedir a Deus para não morrer. Mas podemos pedir sabedoria para aprender a morrer e desapegar daquilo que nos segura em nossas angústias, que nos amarra na dor e no sofrimento mais trágico que a própria morte em si.