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Paz na rua – Paz da rua“O Espírito do Senhor atua a partir de baixo”
Por Francisco de Aquino Júnior

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

A expressão “paz” está associada aos bens mais importantes da vida humana, isto é, aquilo que é necessário para viver com dignidade: alimento, saúde, moradia, trabalho, companhia, afeto, lazer, serenidade, esperança, Deus…  Por isso mesmo, está ligada aos anseios humanos mais profundos. É como uma síntese dos bens e anseios fundamentais da vida humana. Não por acaso, é uma das expressões mais utilizadas – em festas de natal, ano novo, aniversário, em despedidas, como saudação – para exprimir o desejo ou os votos de uma vida boa e feliz para si e para os outros: “muita paz”, “fique em paz”, “vá em paz”, “tenha paz”, “viva em paz”. A liturgia do dia primeiro de janeiro, “Dia Mundial da Paz”, re-corda uma fórmula antiga de benção em Israel que conclui precisamente com uma súplica de paz: “O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz” (Nm 6,26)!

Esse é o sentido amplo e profundo da expressão bíblica schalom: ausência de guerra, harmonia e bem estar interior, relacionamento com as pessoas e com Deus, prosperidade, saúde, justiça, felicidade, salvação… Envolve todos os âmbitos ou dimensões da vida e tem em Deus seu princípio e seu fim. A tradição profética, em especial, insiste muito na relação entre paz e justiça: a paz é fruto da justiça (Is 32,17). E a justiça tem a ver, antes de tudo, com o direito dos pobres e marginalizados: “praticai a justiça e o direito, livrai o oprimido do opressor, não exploreis o migrante, o órfão e a viúva, não derrameis sem piedade sangue inocente neste lugar” (Jr 22,3).

A paz, que tem a ver com os bens e anseios mais profundos da vida humana e que é inseparável da justiça enquanto garantia dos direitos dos pobres e marginalizados, é dom de Deus e tarefa nossa. Por ser dom de Deus, suplicamos constantemente a paz: dá-nos Senhor a paz! Por ser dom, é algo que só pode ser acolhido e vivido na doação de si. Enquanto “dom de Deus”, portanto, a paz é algo que é dado para ser feito. É tarefa cotidiana e permanente; tarefa que envolve todas as dimensões da vida; tarefa de todas as pessoas; tarefa que tem nos pobres e marginalizados seu critério e sua medida.

Enquanto síntese dos bens e dos anseios mais profundos e fundamentais da vida humana, a paz tem sempre nos pobres e marginalizados seu critério e sua medida. Tanto no que diz respeito ao diagnóstico da paz numa determinada sociedade (presença ou ausência de paz), quanto no que diz respeito ao projeto de construção da paz (o que deve ser feito, como deve ser feito, por onde começar…). Os pobres e marginalizados são, assim, os juízes da paz (julgamento, veredicto) e os principais artesãos/sujeitos da paz (projeto, tarefas, caminhos, moderadores).

O mundo dos pobres e marginalizados é muito amplo e complexo: muitos rostos, muitas histórias, muitas formas e níveis de violência e sofrimento, muitas formas de resistência e criatividade… Pensemos, aqui, concretamente, na população em situação de rua. Dados recentes do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA) estimam que de 2012 a 2020 houve um aumento de 140% da população em situação de rua do país, passando de 92.515 pessoas (2012) para 221.869 pessoas (2020). Convém destacar que isso é apenas “estimativa” e que esses dados se referem a março de 2020 – antes de pandemia[1]. Não é preciso insistir aqui nas condições (econômicas, sociais, culturais, psicológicas, afetivas, religiosas etc.) sub-humanas em que vivem essas pessoas… Mas se falar dessa situação é desconcertante, mais desconcertante ainda é falar de paz a partir dessa situação. E, no entanto, essa é a única forma honesta, verdadeira, autêntica e evangélica de falar de paz: a partir daqueles/as a quem mais é negada a paz, a partir daqueles/as que mais necessitam de paz, a partir daqueles/as que são os principais sujeitos/artesãos paz.

Sem dúvida nenhuma, a rua é lugar de violência: todas as formas possíveis e imagináveis de violência (econômica, social, cultural, policial, gênero, racial, religiosa etc.); violência da sociedade contra o povo da rua; violência introjetada e reproduzida pelo próprio povo da rua; violência pandêmica ou generalizada. Mas a rua é também lugar de paz. E quem desenvolve algum trabalho com a população em situação de rua pode comprovar isso de muitas maneiras: a resistência e teimosia em viver; a criatividade para ganhar a vida; as diversas formas de trabalho; a partilha de comida, roupa, papelão, cigarro, cachaça; as trocas de informação sobre pontos de doação ou centros de referência; o cuidado dos doentes; as festas, os cantos, as rodas de cachaça; as amizades, os namoros e os vínculos conjugais; as ocupações de prédios e viadutos; as cooperativas de catadores; o movimento da população de rua; as lutas por políticas públicas de assistência social, de moradia e contra a violência policial; as comunidades de fé; as rezas e celebrações… Tudo isso é sinal/expressão da vivência e construção cotidianas de paz na rua. E é isso que nos permite falar de “paz na rua”. O teólogo salvadorenho Jon Sobrino se refere a essa luta cotidiana pela vida como uma espécie de “santidade primordial” ligada à vocação primeira e fundamental de todo ser humano que é “viver e dar vida”. E o papa Francisco vê nesses artesãos da paz verdadeiros “santos ao pé da porta”.

A partir da rua podemos entender melhor em que consiste a paz e como construir a paz no mundo. A paz não é uma ideia ou um sentimento genérico e abstrato; não é mera ausência de guerra ou agressão física; não é algo intimista nem meramente individual; não é algo que se espera e se recebe de braços cruzados. A paz diz respeito aos bens e anseios necessários a uma vida digna: alimento, saúde, moradia, trabalho, companhia, afeto, lazer, serenidade, esperança, Deus… A paz é dom de Deus e tarefa nossa. A paz é inseparável da justiça, entendida como garantia dos direitos dos pobres e marginalizados, de modo que eles são, do ponto de vista ético-evangélico, os principais sujeitos e artesãos da paz e o critério e a medida de paz de uma sociedade: o que fizerem ou não fizerem a um destes é a mim que fizeram ou não fizeram (Mt 25,31-46). Neste sentido, a rua não é apenas um lugar onde se vive e constrói a paz (paz na rua), mas também o critério e a medida de construção da paz numa sociedade (paz da rua). Não nos iludamos: “enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum”[2]. A paz só é possível na fraternidade. Só há fraternidade na justiça. E os pobres e marginalizados são sempre os juízes e os mestre da paz. É neste sentido que falamos não apenas de “paz na rua” (vivida na rua), mas de “paz da rua” (construída a partir e em função da rua). Isso soa absurdo ou mesmo escandaloso, é verdade. É o escândalo da salvação que nasce na periferia e manifesta seu poder na cruz. É a lógica do Deus de Jesus, cujo Espírito “age a partir de baixo”.

A verdadeira paz vem de baixo: das ruas, dos lixões, dos viadutos…

Francisco de Aquino Júnior[1]

[1] Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

[1] Cf. IPEA. Nota Técnica: Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020). Disponível em:

https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200612_nt_disoc_n_73.pdf

[2] FRANCISCO. Exortação Apostólica A alegria do Evangelho. São Paulo: Paulinas, 2013, N. 202.

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