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O novo humanismo: paradigmas civilizatórios para o século XXI a partir do Papa Francisco

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Por Padre Eliseu Wisniewski, cm. No site do IHU.

“Diante dos crescentes e graves retrocessos civilizatórios que priorizam interesses mesquinhos em prejuízo do adequado exercício da cidadania – esta obra coletiva [O novo humanismo: paradigmas civilizatórias para o século XXI a partir do papa Francisco] composta de reflexões qualificadas tem o mérito de apresentar/fazer conhecer os pressupostos de um novo humanismo apontado pelo Papa Francisco e como eles se expressam em seu Magistério, ou seja, o pontificado de Francisco insurge contra antihumanismos e póshumanismos, porque, em alguma medida, sob tais perspectivas acaba sendo excluído o próprio ser humano”, escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) ao comentar a obra O novo humanismo: paradigmas civilizatórias para o século XXI a partir do papa Francisco, de Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, Claudemir Francisco Alves, Robson Savio Reis Souza, Adriana Maria Brandão Penzim.

Eis o artigo.

A obra: O novo humanismo: paradigmas civilizatórias para o século XXI a partir do papa Francisco (Paulus, 2022, 640 p.), organizado por Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, Robson Sávio Reis Souza, Claudemir Francisco AlvesAdriana Brandão Penzim, é fruto das reflexões do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (NESP), da PUC Minas e da Arquidiocese de Belo Horizonte. O livro que vem a público faz parte da série Cadernos Temáticos do NESP. Cada um dos títulos publicados nesta série foi produzido com o objetivo de constituir uma oportunidade a mais de debate, aprofundamento e análise de temas contemporâneos candentes.

Capa do livro O novo humanismo: paradigmas civilizatórias para o século XXI a partir do papa Francisco (Foto: Divulgação)

Os autores e autoras dos capítulos que compõe esta obra trazem provocações sobre as mudanças civilizatórias em curso, e tendo-se em conta a avalanche de retrocessos civilizatórios, defendem a urgência de um novo humanismo que lance fundações sólidas para o século XXI. Neste cenário, atento às questões do presente século, tem se elevado a voz do papa Francisco e sua convocação para um “novo humanismo”. Os “discursos e atitudes do papa Francisco dão sinais de um novo humanismo: um projeto conceitual e político, teórico e prático, que abala as formas atuais de organização econômicas e sociais” (p. 14). Assim, “supomos existir no modo de vida defendido pelo papa Francisco um amplo código de valores existenciais, em cuja esteira poder-se-ia constituir novos paradigmas civilizatórios à altura dos desafios enfrentados na aurora deste terceiro milênio” (p. 10-11).

Nesta perspectiva a referida obra esta estruturada em quatro partes, a saber:

1) na primeira parte, intitulada “O pontificado de Francisco e a emergência de um novo humanismo”, reúnem-se textos que procuram caracterizar a novidade histórica que os ensinamentos de Francisco representam (p. 31-200);

2) na segunda parte, “Tempos de mudança, mudança de tempo” encontram-se reflexões que caracterizam a vida neste início de século (p. 201-331);

3) na terceira parte, “O novo humanismo no horizonte da esperança”, apontam-se os sinais do novo humanismo que já brotam entre fendas no sistema atualmente dominante (p. 333-505);

4) na quarta parte, intitulada: “Desafios atuais para um novo humanismo em ação”, se lida com algumas das questões mais prementes do mundo contemporâneo, como a destruição ambiental, a crise migratória e, mais ainda, a dissolução dos liames políticos entre os cidadãos tendo sido estes substituídos pela ideia de “indivíduos”, mediante a redução da alteridade à presunção de uma verdade única que exclui a diferença (p. 507-632).

Especificamente, no conteúdo dos cinco textos da primeira parte encontraremos:

1) A aurora de um novo humanismo: ideias e ações do papa Francisco (p. 33-69), escrito por Dr. Robson Sávio Reis de Souza, propõe a hipótese de que o “novo humanismo” proposto pelo papa Francisco contempla um conjunto de ações nos campos religioso, social, ambiental, geopolítico, econômico, educacional, entre outros, com vistas à construção de um novo modelo de sociedade e, portanto, numa tentativa de reintroduzir o significado do humanismo, com vistas à superação das gravíssimas crises (política, econômica, ecológica, sanitária) que atravessam a humanidade neste início de século XXI. Frente a isso, o autor lista sumariamente algumas iniciativas do papa Francisco que têm repercutido globalmente e que podem sinalizar, na prática, quais são as intuições do pontífice quando se refere a um novo humanismo:

a) o protagonismo dos movimentos populares (p. 38-40),
b) a economia de Francisco e Clara (p. 40-45),
c) o Pacto Global pela Educação (p. 45-48),
d) o Sínodo da Amazônia (p. 49-52),
e) o cuidado com a Casa Comum (p. 52-54),
f) as reformas na Igreja (p. 54-57),
g) relação com outras religiões (p. 57-60),
h) a cultura do encontro (p. 61-63).

2) Habitar humanamente na esperança (p. 71-99), é a reflexão proposta Dr. Elton Vitoriano Ribeiro. O referido autor parte do questionamento sobre o engendramento de um novo humanismo na sociedade contemporânea: numa época em que se fala de fim do humanismo, em pós-humanidade, em humano pós-humano, em transumanismo, ainda é pertinente falar em humanismo? (p. 71). De forma construtiva, Ribeiro pensa o humanismo em suas grandes linhas, a partir dos efeitos históricos do humanismo clássico, caminhos para o humanismo hoje. Assim, na primeira parte de sua reflexão constrói uma breve narrativa sobre a história do termo humanismo (p. 72-78). Depois, a partir dessa narrativa, propõe um novo olhar sobre o humanismo e suas possibilidades (p. 78-88). Em seguida, sustenta que um humanismo grávido de possibilidades possui alguns desafios importantes que podem se devidamente refletidos, gerar novos caminhos de humanização em nosso tempo (p. 88-94). Conclui, defendendo que um projeto humanista contemporâneo, herdeiro do projeto de um humanismo clássico, não só é possível, mas que já está acontecendo a partir de um exemplo concreto na ação do papa Francisco (p. 94-97).

3) Disrupturas na educação para a formação de um humanismo nascente (p. 101-134), de autoria do Dr. Geraldo Luiz De Mori. Compreendendo por disrupturas o “ato ou efeito de romper-se, ruptura, fratura” (p. 101), e “associado à palavra educação, esse termo indicará rupturas ou interrupções a serem operadas nos processos educativos para que eles participem da formação de um humanismo nascente” (p. 101), e, para melhor entender a função das “disrupturas” no campo educativo, o autor, em primeiro lugar traz uma breve incursão na história da “ideia” de humanismo, mostrando sua associação com a prática pedagógica (p. 102-110).

Num segundo momento, De Mori retoma os principais questionamentos feitos hoje à “ideia” de humanismo (p. 110-119), para, num terceiro momento, indicar quais seriam as principais “disrupturas” a serem introduzidas no campo educativo para que ele, de fato, contribua para a formação de um humanismo nascente (p. 119-131). Nessa reflexão sobre a educação hoje exigida, o autor recupera princípios firmados pela Igreja católica ainda no Concílio Vaticano II e chega ao pontificado do papa Francisco que, insistentemente, tem reafirmado o lugar da educação num mundo em que se respeitem os direitos inalienáveis do ser humano e em que seja preservada a criação em seu conjunto.

4) A modernidade trágica (p. 135-162), de autoria de Dr. Carlos Roberto Drawin. Em sua reflexão, o autor interpreta a modernidade a partir da noção de “tragédia”(p. 135), constatando que tempos trágicos são também tempos apocalípticos, ou seja, carregados de revelações. Entra, por isso e diálogo com alguns dos principais autores da filosofia moderna – explorando as inter-relações entre história e absoluto, tal com elaboradas por Hegel (p. 144-151), passando em seguida, pela proposta de Feuerbach que em oposição a Hegel, inverte a direção do olhar: em vez de se prestar atenção à vacuidade das ideias, é preciso mover-se para a materialidade do sujeito concreto (p. 151-152). Conclui suas reflexões apresentando alguns conceitos do filósofo Nietzsche (p. 153-159).

Nesse exercício que Drawin apresenta como um “experimento de pensamento” (p. 135), a situação de impasse contemporânea é remontada a uma crise mais profunda da própria racionalidade moderna em que a valorização da razão e a intensa destruição se combinaram e se elevaram ao mais alto grau. Destaca-se a situação aporética atual em que a irracionalidade se mostra inerente e resistente ao conhecimento e à técnica e, quando isso ocorre, as coisas ficam confusas ; não sabemos mais o que pensar ou que direção tomar (p. 136-143).

5) Eco-humanismo e anticapitalismo (p. 163-199), Dr. Maurício Abdalla salienta que as duras palavras proferidas contra o capitalismo proferidas pelo papa Francisco não são feitas em função de preferências ideológicas mas, de uma percepção de quem percebe o mundo a partir de uma perspectiva eco-humanista, de que o processo civilizatório iniciado na Europa entre os séculos XV e XVI ultrapassou os limites toleráveis pela humanidade e pelo planeta e chegou ao seu fim como projeto humano possível (p. 163-164). O capitalismo não é mais suportável e o processo civilizatório que se desenvolveu conduzido por ele se esgotou. Sua falência se mostra pelo progressivo e acelerado processo de exclusão dos seres humanos e destruição do ecossistema e pela sua total incapacidade de propor soluções criativas e viáveis para reverter a situação (p. 163-172). Frente a isso, o autor observa que o anticapitalismo não é um posicionamento motivado por ideologias mas, um imperativo ético (p. 173-177), e as raízes da crítica ao capitalismo se encontram nos sermões dos Padres da igreja (p. 177-180), e, na crítica marxista ao modo de produção capitalista (p. 180-187).

O autor observa ainda, que as raízes da crítica ao capitalismo estão fundadas nas ideias de justiça e rejeição às diferenças sociais (p. 187) e, assim sendo essas duas linhas de entrecruzam em uma retomada dos ensinamentos do papa Francisco para concluir que, nas últimas décadas, o sistema capitalista está chegando ao seu estado mais puro e, nesse estágio, mostra-se mais radicalmente associado a uma deterioração das condições de sobrevivência do ser humano e da natureza (p. 187-197).

No conteúdo das quatro reflexões da segunda parte encontraremos:

6) A organização da vida na modernidade estendida: cotidiano e algoritmização (p. 203-230), Márcia Stengel e Simone Pereira da Costa Dourado, ambas doutoras em Ciências Sociais, tratam das transformações ocorridas na modernidade que anunciam a entrada em uma nova fase para sociedades e culturas denominadas pelos analistas coo pós-moderna. Para isso, as autoras adotam a definição de Anthony Giddens para quem a modernidade refere-se a estilo, costume de vida que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influencia.

Stengel e Dourado defendem que a modernidade pode segundo esta abordagem ser compreendida como uma experiência do sujeito, sendo possível pensar que as transformações sociais, econômicas e políticas do final do século XVIII e início do século XIX são uma extensão da modernidade e as ambiguidades dos séculos XX e XXI podem ser consideradas como consequências de uma modernidade estendida (p. 206-211).

As referidas autoras discutem, ainda, como a passagem de um estágio ao outro foi marcado, sobretudo, pelo aprimoramento de uma cultura digital que se baseou em avanços informacionais provocados pela criação de sistemas de algoritmos cada vez mais complexos, que passaram a organizar as atividades cotidianas em diferentes setores da economia, do mercado de trabalho, do controle e fiscalização, da educação, do entretenimento e das mídias sociais (p. 212-227).

7) Por um humanismo digital integral (p. 231-271), de autoria do Dr. Moisés Sbardelotto, propõe em sua reflexão uma releitura a partir do ambiente digital, da ecologia integral proposta pelo papa Francisco em sua Encíclica Laudato Sì’, ou seja, um humanismo digital integral, que busque promover, a partir das contribuições positivas das lógicas digitais e reconhecendo os seus limites, o desenvolvimento do ser humano como um todo, no respeito à sua dignidade e consciência pessoais, e de todos os seres humanos, sem discriminação nem exclusão, na busca do bem comum (p. 234). Assim sendo, para falar do humanismo da ecologia das mídiasSbardelotto inicia sua reflexão partindo de uma conferência proferida no ano de 2000 pelo teórico da mídia Neil Postman, uma vez que esta oferece elementos para se refletir sobre o humanismo digital contemporâneo em suas transversalidades e interligações (p. 235-249).

Em seguida, focalizando as práticas sociodigitais contemporâneas, ajuda a perceber as inter-relações humano-técnicas complexas que se estabelecem na cotidianidade da cultura contemporânea e que, por sua vez, também a moldam (p. 249-257). Conclui reconhecendo que a proposta de um humanismo digital integral não é um conceito pronto com base em uma análise acabada, mas sim uma perspectiva de ação e reflexão a ser aprofundada e elaborada, defendendo, por isso, que a cultura digital revela a necessidade, cada vez maior, de um agir humano ético e responsável na construção de redes de relação verdadeiramente humanas, humanizadas e humanizantes (p. 257-266).

8) Trabalho: chave da questão social, fator essencial de humanização (p. 273-303), reflexão de Dr. Élio Gasda. O autor observa que o mundo do trabalho vem, se alterando rapidamente nós últimos vinte anos: internet, tecnologias digitais, informalização, precarização, desregulamentação, terceirização, inteligência artificial, uberização, desemprego estrutural (p. 273). O paradigma tecnocrático se impôs como nova forma cultural (p. 274). Nesse novo paradigma tecnológico-industrial não há mais trabalho para todos resultando em milhares de descartados do mercado de trabalho (p. 273).

Frente a isso, Gasda organiza sua reflexão em três tópicos:

a) trazendo em primeiro lugar a caracterização das revoluções tecnológicas industriais (p. 274-279);
b) num segundo momento destaca os impactos da Quarta Revolução Industrial no mundo do trabalho: ameaças, oportunidades e projeções (p. 279-293);
c) num terceiro momento apresenta as possibilidades de um outro mundo do trabalho: prioridade das pessoas sobre o capital, o trabalho como um direito humano, a solidariedade como opção, novas foras de sindicalismo e novas estratégias (p. 293-299). O texto finaliza oferecendo algumas questões éticas (p. 299-300).

9) Novo normal ou velha exploração: e ai? (p. 305-331), de autoria de Dr. Cezar Britto. Britto analisa os impactos criados pelas novas tecnologias em tempos recentes. Constata que tais inovações não constituem uma novidade histórica, uma vez que toda inovação, ao irromper, sempre pertence a alguém que dela se apropria, beneficiando-se de seus produtos; do outro ficam aqueles que se experimentam mais diretamente as consequências nefastas das mudanças e restam alijados dos principais benefícios que elas produzem. O autor enfrenta as contradições a partir do trinômio: direito de serdireito de ter e direito posto. Focalizam-se, sobretudo, as contradições referentes ao direito de trabalho, hoje enormemente tomado de assalto, onde, apenas uma visão humanista seria capaz de coibir a exploração e de inverter a lógica que tem fortalecido o direito de ter, negando o direito de ser.


As cinco reflexões da terceira parte trazem estes assuntos:

10) O novo humanismo segundo o papa Francisco (p. 335-377), escrito pelo doutor Manfredo Araújo de Oliveira chama a atenção para o processo de desumanização da vida, ou seja, numa visão reducionista do ser humano (p. 339) – individualismo alheio à transcendência e indiferente à ecologia, que ele faz remontar aos pilares da racionalidade moderna: filosofia cartesiana e a filosofia kantiana (p. 336-354).

Quanto à pretensão cartesiana Manfredo Oliveira observa que se pretendia chegar a um conhecimento prático que permitisse aos seres humanos se tornarem senhores e possuidores da natureza.

Por sua vez a pretensão kantiana eleva o humano à posição de sujeito, provedor de sentido e fonte de inteligibilidade.

Essas pretensões desencadearam uma profunda degradação ambiental e social e estas não se resolvem com medidas meramente ocasionais. Exige uma nova antropologia (p. 358), mais especificamente uma nova forma de se entender o humano e sua posição no mundo – uma antropologia alternativa, cujos princípios e fundamentação encontramos nos ensinamentos do papa Francisco. (p. 354-375).

11) Antropocentrismo? Transumanismo? “Os últimos homens”? (p. 379-415), de autoria de Dr. José Ignacio González Faus. Nestas páginas o autor desenvolve uma reflexão antropológica em chave teológica sobre o problema do mal, a natureza humana, o individualismo ínsito ao modelo moderno de razão, de sociedade e de relações econômicas (p. 386-411). Faus apresenta duras críticas ao modelo socioeconômico vigente antes mesmo do surgimento da pandemia, chamando a atenção para o contexto social e econômico do surgimento da Covid-19, as respostas para seu enfrentamento e as perspectivas para o mundo pós-pandemia (p. 381-386) – faz notar que “devemos estar seriamente preocupados com a questão de se o atual transumanismo não é realmente um pós-humanismo ou anti-humanismo” (p. 413)

12) Bem viver: esperança, resistência, profecia (p. 417-436), de autoria do doutor Francisco de Aquino Júnior. O autor faz notar que a construção do bem viver ou da ecologia integral é o desafio e a tarefa mais importante em todos os tempos e situações. Diante disso, Aquino Júnior destaca ser importante compreender que o lugar social da Igreja são os calvários da humanidade, retomando e reafirmando, por isso, a opção pelos pobres. Sempre de novo, é preciso re-cordar e reafirmar essa verdade fundamental de nossa fé, que é tão determinante na vida e na missão da Igreja de todos os tempos e situações, particularmente e momentos cruciais da história. E isso se faz escutando os gritos e lamentos dos pobres e da Terra (p. 419-422) e reafirmando nosso compromisso na construção do “bem viver” (p. 422-429). O autor conclui elencando alguns pontos e desafios fundamentais no exercício dessa missão histórico- espiritual que nos toca como Igreja – uma agenda mínima orientada pela esperança, pela resistência e pela profecia (p. 429-432).

13) Os sete pecados capitais à luz da psicanálise (p. 437-471), escrito por William Cesar Castilho Pereira e Domingos Barroso da Costa, ambos entendem o pecado como um ato de escolha, uma preferência deliberada e consciente pelo mal (p. 437-445), e, por isso servem-se da lista dos pecados capitais, como categoria de análise do modo de vida nas sociedades contemporâneas – cada um dos sete pecados capitais é visto sob a lei do gozo e do fetiche, na medida em que o mercado pretende se elevar à categoria do divino e se preconiza a realização de um capitalismo livre de peais de qualquer ordem: vaidade ou soberba (p. 445-445), luxúria (p. 448-452), avareza (p. 452-456), ira (p. 456-459), inveja (p. 459-462), gula (p. 463-465), preguiça (p. 465-469).

14) Francisco de Assis e Simone Weil: humanismo e mística da pobreza (p. 473-505), de autoria da doutora em teologia Maria Clara Bingemer. A autora tendo em conta o momento atual, observa que o encontro com figuras como Francisco de Assis e Simone Weil, mostram uma coerência radical na vivência de valores como o despojamento, pobreza e serviço aos outros (p. 473-475). Bingemer mostra como a mística da pobreza que viveu Francisco de Assis e que, fascinou sete séculos depois, a filósofa se radica no coração do Evangelho. Examina, por isso, primeiramente como a escritura neotestamentária apresenta a pobreza como um desafio e um convite (p. 475-477).

Em seguida, a autora mostra como se deu o encontro de Simone Weil com Francisco de Assis (p. 478-480). Num terceiro momento destaca-se como a mística da pobreza que vivia Francisco de Assis foi assimilada e seguida por Simone Weil e, como essa mística se tornou para ambos um ideal de vida, uma condição para a vivência de uma autentica e humanizadora liberdade e uma possibilidade de comunhão e união como a beleza do mundo e a dimensão poética de existência (p. 480-493). Ao final, Bingemer destaca como ambos são atraídos apaixonadamente pela cruz (p. 493-503).

A quarta parte composta de cinco reflexões aprofunda estes assuntos:

15) O pilar ausente da paz: cuidado ambiental, direitos e responsabilidades (p. 509-536), elaborado por Fiona Macaulay. A autora supracitada argumenta neste capítulo que o cuidado com os outros seres humanos, especialmente com os grupos minoritários, e o cuidado com o planeta brotam dos mesmos imperativos morais. Frente a isso, examinam-se algumas iniciativas legais que surgiram nas últimas décadas para promover a proteção ambiental e ajustiça climática, analisando como os movimentos sociais e os debates ambientais tentaram mudar nossa compreensão de uma perspectiva antropocêntrica para uma perspectiva mais holística, que vê as pessoas e o planeta como intimamente conectados: bem como uma concepção ecocêntrica, que vê uma equivalência entre os direitos da natureza e os nossos direitos como seres humanos. Macaulay examina como alguns países, frustrados pela lentidão com que se opera tal mudança, já incorporaram a noção de “direitos da terra” em suas constituições e leis (p. 510-521). Em seguida, traça-se a evolução de uma campanha internacional que vem sendo feita com o objetivo de fazer do “ecocídio” um quinto crime internacional contra a paz, que pudesse ser processado tanto no Tribunal Penal Internacional, assim como internacionalmente, no sistema judiciário de cada país (p. 521-533).

16) Indivíduo, liberdade e modernidade política (p. 537-558), escrito por João Carlos Lino Gomes, repassando a história do desenvolvimento da cultura do Ocidente (p. 538-554) defende que a crise atual de valores democráticos é o resultado do descentramento da política que estabeleceu o aspecto econômico como o aspecto mais importante da vida, onde os indivíduos cuidando apenas do próprio progresso material – abandonaram paulatinamente a ideia de política/coisa pública na medida que a delegaram para os representantes políticos , ou seja, houve uma colonização da esfera política para a esfera econômica, e como consequências o domínio dos diferentes aspectos da vida pelo mercado e a perda de valores essenciais à vida em sociedade (p. 555-557).

17) Humanismo integral: construindo um mundo plural (p. 559-574), de autoria de José Luiz Quadros de Magalhães, aborda os elementos de ruptura paradigmática que os processos de desocultamento, de revelação do diverso nos permitiu conhecer: aprender com as outras culturas, aprender com os outros saberes, dialogar e construir uma outras percepção do humano (p. 562-572). Salienta que a “contemporaneidade nos revelou e expôs uma maravilhosa diversidade de desejos, percepções, espiritualidades, idiomas, povos, epistemologias, culturas, e é no diálogo com essa diversidade desocultada que podemos e estamos construindo o radicalmente novo” (p. 562).

18) Centro e periferia: refletindo sobre seus significados no contexto das grandes cidades (p. 575-602), texto de Luciana Teixeira de Andrade e Juliana Gonzaga Jayme – tomando como exemplo e objeto empírico a cidade de Belo Horizonte (p. 582-585), as autoras esclarecem que, ao falar em cidades brasileiras não é possível fechar os olhos para a enorme diversidade das cidades, por outro lado não há como negar que certos aspectos as distinguem das cidades norte-americanas ou europeias, ao mesmo tempo que as aproximam das latino-americanas. Andrade e Jayne destacam que as representações feitas sobre estes espaços estão em disputa, são processuais e variáveis: a violência positiva ou negativamente que se atribui ao termo periferia se modifica a depender do perfil social dos que habitam cada região (p. 585-597).

19) Pensar a migração outramente o (pós)humanismo entre a ética do estrangeiro e a política da hospitalidade (p. 603-632), escrito por Nilo Ribeiro Junior. A partir de casos concretos (p. 605-611) – Ribeiro Junior examina o fenômeno da migração-refúgio e contrapondo o modelo econômico atual gerador de exclusões descreve um novo humanismo a partir das categorias/conceitos da Achille Mbembe, Giorgio Agambem e Emnanuel Levinas (p. 611-629). O autor “visa pensar a migração outramente dita, a saber, ocupar-se de um pensamento que tenha como ponto de partida o caráter pós-estruturalista da linguagem ancorado, portanto, em alguns relatos/Ditos dessa condição migrante do ser humano, dos quais não se imiscui a subjetividade humana em função do Dizer subjacente ao fenômeno” (p. 604).


***

A importância de um novo humanismo… Estamos diante de uma excelente obra que trata de um tema tão urgente com seriedade e objetividade. Diante dos crescentes e graves retrocessos civilizatórios que priorizam interesses mesquinhos em prejuízo do adequado exercício da cidadania – esta obra coletiva composta de reflexões qualificadas tem o mérito de apresentar/fazer conhecer os pressupostos de um novo humanismo apontado pelo papa Francisco e como eles se expressam em seu Magistério, ou seja, “o pontificado de Francisco insurge contra antihumanismos e pós-humanismos, porque, em alguma medida, sob tais perspectivas acaba sendo excluído o próprio ser humano. O pontífice entende que a humanidade chegou a uma encruzilhada que impõe a revisão do caminho percorrido nos últimos séculos, responsável pela atual crise. Defende uma refundação – um ultrapassamento – do humanismo moderno sob uma perspectiva plural, superando suas vicissitudes históricas com vistas a responder mais eficazmente aos desafios próprios do século atual” (p. 13).

O horizonte interpelante desta obra nos deixa, portanto, desafiante dever de casa: investindo no estudo, nas reflexões e ações fecundadas por um novo humanismo. Frente a isso, recomendando esta publicação, peço licença a Dom Walmor Oliveira Azevedo, Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte e Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que assim se expressou sobre a relevância deste escrito:

A publicação, quase uma enciclopédia, possibilita leitura atraente, incentivando um investimento humanístico na qualificação do agir cidadão, pela conquista da clarividência nos juízos e configuração de um horizonte inspirador, válido e indispensável. É, pois, indicada para todos os segmentos da sociedade, sobretudo para líderes de todo matiz, políticos, educadores, pais e mães. Recomendada também para profissionais que procuram investir sempre mais nas suas competências, considerando a exigência contemporânea de se superar o conceito de que “bem-sucedido” seja associado apenas àqueles que conquistam o lucro, ostentando muitos bens. No horizonte amplo das crises mundiais, multiplicando cenários de guerra e exclusões que descompassam as relações sociais, torna-se ainda mais urgente vencer o individualismo, acolhendo a convocação do Papa Francisco para se viver um novo humanismo, ancorado em atitudes e palavras coerentes com o Evangelho de Jesus Cristo. Nesse sentido, as mudanças radicais e impactantes deste tempo precisam ser entendidas a partir de critérios que promovam nova lucidez, capaz de dar rumo diferente a instituições que configuram contextos locais e globais. Igualmente importante, a partir de um novo humanismo deve-se cultivar esperança e, assim, encontrar forças para resgatar a civilização contemporânea do caos. Sensibilizar-se ante o desafio de se enfrentar os problemas atuais, acolhendo indicações para a construção de um tempo novo condizente com as conquistas científico-tecnológicas deste terceiro milênio. Esta obra – O novo humanismo: Paradigmas civilizatórios para o século XXI a partir do Papa Francisco – é uma escola de formação e de diálogo, aberta àqueles que reconhecem a própria responsabilidade na transformação do mundo. O momento atual exige a sabedoria para reconhecer a centralidade da vida, em contraposição às lógicas de destruição do planeta. Sem a assimilação e a promoção de um novo humanismo não serão rompidas as barreiras estreitas e prisionais do cenário atual, que impõem retrocessos civilizatórios”.

Fonte
[IHU] O novo humanismo: paradigmas civilizatórios para o século XXI a partir do Papa Francisco. Artigo de Eliseu Wisniewski

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