Até um tempo atrás, a sexualidade era fortemente, reprimida, sobretudo em ambientes cristãos.
Hoje, vive-se um momento de liberação, em oposição – e em reação – ao momento anterior. As práticas sexuais deixam de estar restritas ao espaço do casamento monogâmico e assumem formas as mais diversas, seja nas preferências sexuais, seja no tipo de relacionamento, que vai de relações esporádicas a vínculos mais permanentes. Em um primeiro momento, isto representou uma importante valorização da sexualidade, contrastando com a repressão anterior.
Tais mudanças, contudo, não se fazem sem tropeços. Junto com a destruição de preconceitos e tabus, também se esfacelam valores reais, levando a uma certa anomia, em que tudo parece ser permitido. A sexualidade banalizou-se. O parceiro – ou parceira – é reduzido a um mero “objeto sexual”.
Neste contexto, a igreja católica afirma sua doutrina multissecular, baseada no valor da vida, na dignidade da pessoa humana e na importância do amor. Entretanto, ao concretizar-se em normas específicas e frequentemente marcadas pela rigidez, tal doutrina nem sempre consegue dar conta de uma realidade em plena transformação, levando a hiatos e descompassos entre doutrina e prática.
As CEBs não estão isentas deste processo. Diversas pesquisas – entre as quais algumas realizadas por mim, já na década de 90, com mulheres ativas nas comunidades – constatavam tal hiato.
Seus resultados apontavam para o uso massivo da contracepção – incluindo a esterilização – a existência de relações sexuais fora do âmbito do matrimônio, o aumento da gravidez adolescente, e, em circunstâncias especialmente graves, uma atitude de compreensão e até mesmo de aceitação do aborto.
Nas pesquisas, ficava clara a consciência da “incoerência” entre doutrina e prática. Entretanto, as mulheres não se sentiam “infiéis” em relação à Igreja; em face de uma doutrina inaplicável ao seu cotidiano, descobriam e valorizavam o âmbito da consciência pessoal, reformulando o próprio conceito de pecado.
Na realidade, a própria dinâmica das CEBs – espaço de diálogo e participação, tentando “unir fé e vida” – estimula seus membros a se assumirem como sujeitos de direitos; e embora não se estabeleça uma relação explícita com a temática da sexualidade (que, neste âmbito, não é considerada prioritária), a ampliação do espaço de liberdade concedido à experiência pessoal aprofunda também o sentimento de responsabilidade.
Na época em que estas pesquisas – e muitas outras – foram realizadas, já há 15 ou 20 anos atrás, esperávamos que talvez ajudassem a desenhar, emergindo da própria prática, mudanças no interior da igreja.
Entretanto, passado todo este tempo, é possível constatar que não houve diferenças significativas ao nível do discurso eclesiástico oficial.
Já ao nível da prática, os recentes escândalos concernentes à pedofilia, a homofobia persistente – em maior ou menor grau – e a hipocrisia em manter as aparências, no caso do celibato (formalmente) obrigatório, sem falar nas práticas já hoje incorporadas pelos cristãos – como a contracepção, a vida sexual pré-matrimonial e as segundas e terceiras uniões – apenas comprovam que a defasagem, já constatada pelas pesquisas há cerca de duas décadas, se ampliou ainda mais. As normas oficiais passam a ser crescentemente ignoradas, quando não consideradas irrelevantes.
Por outro lado, a sexualidade continua a expressar-se com enorme liberdade, apesar da emergência de vírus perigosos, entre os quais o HPV e o HIV, e do aumento – ou da maior visibilidade – da violência sexual, da homofobia, do tráfico humano. Ao mesmo tempo, surgem reações opostas e os confrontos ideológicos se acirram, com repercussões inclusive no campo político.
Por sua vez, a consciência dos direitos sexuais e reprodutivos se amplia. A busca por descobrir parâmetros que delimitem o espaço do lícito e do ilícito indicam a urgência de resgatar os grandes valores éticos.
Isto não significa voltar atrás, nem estabelecer de novo uma serie de regras que delimitem estritamente os limites do permitido ou do proibido. Mas sim preservar espaços onde a liberdade individual possa se expressar.
Traduzir os grandes princípios cristãos – o valor da vida, a dignidade da pessoa humana, a igualdade entre o homem e a mulher, a lei do amor – no contexto cotidiano significa optar por uma prática que já não se pauta em certezas absolutas – a partir de uma lista de regras e de uma definição rígida “do que pode” e “do que não pode” – mas que representa uma busca permanente da opção consciente e livre, mesmo implicando riscos e possibilidades de erros.
Para tanto, é indispensável conhecer a realidade contemporânea. Há questões absolutamente novas e impensadas antes, diante das quais não se pode simplesmente impor proibições a priori. È a partir deste conhecimento que pode dar-se um esforço de abertura e discernimento, mantendo sempre uma visão crítica, atenta para discernir o joio do trigo.
É neste contexto que se pode falar de uma ética da responsabilidade e do cuidado que, a partir do exercício da liberdade pessoal e do direito a decidir, se abre ao encontro do outro e, nesta vivência, desvela um nível mais profundo de Encontro.