ColunistasFrancisco Orofino

A Leitura da Bíblia nas Comunidades Eclesiais de Base

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Na Coluna passada vimos os perigos do clericalismo, um vírus que pode destruir a proposta eclesial apresentada pelo Concílio Vaticano II, uma Igreja Povo de Deus, sinodal, aberta e popular. Concluímos que as vacinas que podem deter este vírus seriam as CEBs, os círculos bíblicos e o empoderamento dos Conselhos paroquiais e diocesanos. Hoje vamos começar a aprofundar estas vacinas.

No século passado, o método “Ver-Julgar-Agir”, usado durante muitos anos pela Ação Católica (JOC, JEC, JAC, JUC), teve uma influência muito grande no jeito de o povo das comunidades ler a Bíblia e redescobrir a Palavra de Deus na Vida. Neste método, procura-se, primeiro, ver a realidade, a situação do povo. Em seguida, com a ajuda da Bíblia, procura-se julgar ou iluminar esta situação. Assim, a fala ou a revelação de Deus vem dos fatos e acontecimentos da vida iluminados pela Bíblia. E são estes fatos, enquanto iluminados pela Palavra de Deus, que motivam as pessoas a agir de acordo com a vontade de Deus e a celebrar a sua presença no meio de nós.

Nos Círculos Bíblicos, ao ler a Bíblia, o povo tem nos olhos os problemas da sua vida. A Bíblia torna-se para eles o espelho daquilo que eles mesmos vivem. Estabelece-se assim uma ligação em profundidade entre Bíblia e Vida. A resposta mais frequente que se ouve após a leitura e a reflexão sobre o texto bíblico é esta: “É que nem hoje!” A partir disso, os pobres fazem a grande descoberta: “Se no passado Deus esteve com aquele povo da Bíblia e escutava o seu clamor, então também hoje Deus está conosco nesta luta que nós fazemos para nos libertar, e Ele também escuta o nosso clamor!” Assim nasce uma nova experiência de Deus na vida, um novo olhar, que se torna o critério mais determinante da leitura que o povo faz da Bíblia e que menos aparece nas suas interpretações. Pois o olhar não se enxerga a si mesmo, mas é com ele que enxergamos todas as coisas.

Esta é também a certeza central que percorre a própria Bíblia, de ponta a ponta: Deus está conosco! Ele está no meio de nós! Este é o ponto central da leitura, escondido no significado do nome YHWH com o qual o próprio Deus se revelou a Moisés (Ex 3,7-15). O nome YHWH, Yahweh ou Javé, aparece mais de 6000 vezes na bíblia, sem falar dos nomes que terminam em – ia ou – ias:  Isaías, Jeremias, Zacarias, Malaquias, etc. Estes nomes exprimem o desejo dos pais de darem aos filhos e às filhas um nome que os levasse a lembrar sempre o nome de Deus. Santificado seja o teu Nome!

Na leitura que o povo faz da Bíblia, a Bíblia é vista como nosso livro, “escrito para nós que tocamos o fim dos tempos” (1Cor 10,11). Ela se faz presente na vida não como um livro que impõe uma doutrina, mas como uma Boa Nova que nos revela a presença de Deus na vida. O objetivo principal da leitura que o povo faz da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim, com a ajuda da Bíblia, interpretar a vida e descobrir na vida os sinais da presença de Deus. Os que participam dos círculos bíblicos, eles mesmos se encarregam, como a Samaritana, de divulgar esta Boa Notícia e de atrair outras pessoas para participar. “Venham ver um homem que me contou toda a minha vida!” (Jo 4,29).

Através de cânticos, orações e celebrações cria-se um ambiente fraterno de fé. Cria-se o que antigamente se chamava o contexto do Espírito, que ajuda o povo a descobrir o sentido que o texto tem para nós hoje. A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade envolvente que compreende não só a contribuição do exegeta, mas também e sobretudo todo o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo em grupo; leitura pessoal e comunitária; teatro e celebrações; orações e procissões; a própria vida na comunidade e em casa. O sentido que o povo descobre na Bíblia não é só uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através de raciocínios; é também e sobretudo um sentir, uma consolação (Rm 15,4), um conforto que é sentido e vivenciado, e que “faz arder coração” (Lc 24,32).

O sujeito da interpretação não é o clero nem o exegeta, mas sim a própria comunidade. Aqui está a raiz daquilo que chamamos o “sensus ecclesiae”. Aqui aparecem a riqueza da criatividade do povo e a amplidão das intuições da fé que vão nascendo. Os que participam dos grupos bíblicos sentem-se como participantes ativos, responsáveis pela caminhada da sua Comunidade. Esta dimensão comunitária ou eclesial da leitura popular é um elemento constitutivo da leitura e interpretação da Bíblia. Mesmo quando a pessoa estuda ou lê sozinha a Bíblia, ela está sempre lendo o livro da sua comunidade.

 

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo