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A dimensão psíquica e politicamente subversiva dos Erês: Místicas negras importam!

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Por Padre Gegê

No Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no Instituto Brasileiro de Medicina e Reabilitação (IBMR) escrevi, sob orientação do professor Dr. Walter Boechat, no horizonte da psicologia junguiana, o trabalho intitulado “Exu, arquétipo do inconsciente coletivo”. Na referida obra, o Orixá da dialética, do dinamismo, da emancipação e do movimento – o senhor das encruzilhadas – foi considerado em seu valor psicológico profundo. Enquanto energia psíquica (ou libido, freudianamente falando), Exu é o dinamismo sem o qual a vida psíquica conheceria a estagnação; logo, a morte. Nessa perspectiva, sem Exu não há vida. Hoje, 27 de setembro, as umbandas e alguns candomblés, celebram os Erês, sincretizados nos santos Cosme e Damião(e, entre eles, Doum) . No glossário da obra “Axés do sangue e da esperança”, Abdias Nascimento traduz Erê como “projeção infantil dos Orixás; estado de erê é o transe suave intermediário entre o estado normal e o transe dos Orixás”. Escrevem Luis Antonio Simas e Luis Rufino em “Ciência encantada das macumbas”: “Nas bandas de cá baixam santos que a África não viu… Os santos que por aqui baixam praticam o cruzo…correm atrás de doce”. E dizem: “A agenda colonial produz a descredibilidade de inúmeras inúmeras formas de existência e de saber…”. Esta breve reflexão assume o posicionamento decolonial, mediante o qual sustenta “a beleza do sincretismo”, como defende o teólogo Faustino Teixeira.Não só a beleza como a potência dialógica e inventiva do povo negro, mesmo nas mais desfavoráveis situações. Para Abdias Nascimento, é de “primeiríssima importância” tudo que o negro foi capaz de criar para a resistência e reinvenção da vida nas bandas de cá. As múltiplas, complexas, sofisticadas e dinâmicas experiências religiosas se inserem nesse contexto. Conforme Riobaldo de Guimarães Rosa, “muita religião, seu moço”. Falar, então, de Erê, é falar de formas potentes de sustentar transgressoramente a vida e o encanto. No horizonte da psicologia junguiana, os Erês – conteúdo potente do inconsciente ancestral – podem ser pensados como energia psíquica necessária ao desenvolvimento da personalidade, à expansão da vida e à subversiva competência afrobrasileira de sorrir. Não sem razão, Dona Ivone Lara sustenta que “um sorriso negro traz felicidade”, ou seja, potencializa a psique. Há poucos dias participando de uma roda de conversa sobre intolerância religiosa num pré-vestibular na Maré (onde Marielle Franco estudou), um jovem, considerando o cenário tenebroso, perigoso e catastrófico brasileiro lançou uma desafiadora e desconcertante pergunta: “o que vocês fazem para não adoecer?”. Importante considerar que não poucos ativistas e militantes adoecem e sucumbem em virtude do peso da luta. Também é preciso lembrar que a esquerda (também, excessivamente, branquializada em seus fundamentos teóricos e práticos) desconhece, em grande medida, potencialidades que atravessaram o Atlântico em corpos negros. Para Abdias Nascimento, por exemplo, esquerda e direita se beijam quando o assunto é o negro. Dizendo de outro modo, tanto a esquerda (pensando exclusivamente na luta de classe) quanto a direita (fincada na manutenção de seus privilégios), rejeitam, em virtude do racismo introjetado – os potentes saberes e dizeres africanos e diaspóricos. A trajetória da Teologia da Libertação não se livrou também do déficit da competência Erê. Tornou-se, pois, em boa medida branca demais; demasiadamente séria. Desprezou também ela (teórica e praxisticamente) a razão debochada dos Erês. O rir é subversivo. Não sem razão foi associado ao mal e ao demônio. Dificilmente se vê a imagem de um santo cristão sorrindo. Por que será? Os Erês, por exemplo, situam-se nessas potentes competências forjadoras de resistências e reexistências. E nada mais necessário nestes tempos de horror e retrocesso civilizatório do Brasil que, como lembra, junguianamente, Leonardo Boff “ouvir arquétipos”. É, pois, fator de saúde e resiliência no enfrentamento ativar a capacidade ancestral de sorrir. E isso significa “erenizar” (incorporar erês) a alma e luta – dialogar com a “patota de Cosme”, como canta Zeca pagodinho, que habita nas profundezas do inconsciente ancestral. Quantos militantes e revolucionários você conhece que se tornaram sérios demais? Quantos não se tornaram, em virtude da luta, demasiada e insuportavelmente, neuróticos? E o que os Erês podem ensinar? Ariano Suassuna citando Molière diz algo do tipo: “Nenhum sistema tirano suporta duas voltas de gargalhada”. Fernando Pessoa fala do menino Jesus que o ensina a brincar e a ver todas as coisas de forma encantada. O filme “A vida é bela” mostra ao valor da fantasia para a sustentação da vida em tempo de holocausto. Analisando psicologicamente, é disso que falam os Erês. Trazem eles, pois, para o terreiro psíquico humano força extremada (=axé) de subversão desobediente e risonha. Lembro-me agora do “Marcelinho” – entidade que incorpora a minha amiga nas encruzilhadas da vida e belíssima ativista e sacerdotisa de umbanda ( da “Casa de Cláudia”), Mãe Marilena. Lembro do ponto que cantam quando o sagrado menino baixa: “Marcelinho, Marcelinho, o que é que você quer? Quero bolo, quero bala, pirulito e picolé”. Eis um querer travesso e potente no horizonte da vida pulsiva e encantada. E nada mais urgente para um Brasil tão obstinadamente branco, tão emburrecidamente sério e tão terrivelmente amargo. Os Erês para além do campo religioso, estão ligados à psique; por isso, trazem conteúdos necessários à promoção, sustentação e expansão da vida. Como potências insubmissas e transgressora eles ensaiam novos tempos possíveis, apesar das potências de morte emergentes. Eles reclamam e exigem o doce da vida… ontem as crianças corriam atrás de balas ( e tudo era festa! ); hoje – na era Witzel – as balas correm atrás das crianças (e tudo é morte!).
Contudo, apesar dos pesares, as sabedorias guardadas do povo negro em chave ancestral bem sabe que não basta viver biologicamente (“vidas negras importam!”), mas também poética, encantada e misticamente (“misticas negras importam!”). Os Erês confirmam sorridentes as palavras potentes de Conceição Evaristo: “Eles combinaram de nos matar; e nós combinamos de não morrer”. Essa combinação transgressora deu-se, assim o creio, na confraria dos Erês. Diz Moniz Sodré em “O pensar nagô” que a alacridade ou alegria “é alavanca”. Parafraseando um santo católico, em chave afrocentrada, pode-se dizer que “um militante triste é um triste militante”; um revolucionário triste é um triste revolucionário”. É, pois, no horizonte de enfrentamento político, transgressor, risonho e debochado que afirmou o místico afrocentrado, Abdias Nascimento, no poema “Brisas Panamenhas”: “Somos contentes erês”. E diz ainda o “negro revoltado” no poema “Olhando no espelho”, em tom profético e encorajador para os nossos tempos: “…devemos continuar nosso sonho, nosso trabalho, reinventando nossas letras, recompondo nossos nomes próprios, tecendo laços firmes nos quais ao RISO ALEGRE DO NOVO DIA enforcaremos os usurpadores de nossa infância”.
ÁGATHA VIVE!

  • Dedico esse escrito à amiga e sacerdotisa de umbanda, Mãe Marilena, em cujo corpo vi – nas sagradas travessuras dos contentes erês – as insubmissas movências de Marcelinho.

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