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“O Padre Ezequiel vive hoje, mais do que nunca, na Amazônia e na memória das comunidades cristãs”, afirma Padre Dário Bossi
Por Luis Miguel Modino

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Uma das páginas mais gloriosas da Amazônia foi escrita pelos mártires, uma ideia que surgiu no Sínodo para a Amazônia, onde estava presente a figura de alguém cujos 35 anos de martírio são comemorados neste 24 de julho, o padre Ezequiel Ramin. O Missionário Comboniano havia chegado ao Brasil pouco mais de um ano antes, “com muito entusiasmo e sensibilidade pela situação da vida do povo”, como recorda Flávio Schmidt, coordenador dos Leigos Missionários Combonianos no Brasil.

Aos 31 anos, Ezequiel Ramin “não se conformava com essa realidade e a opressão que o povo sofria, reforçava sempre a ideia da fé andar de mãos dadas com a vida”, de acordo com Flávio. Ezequiel Ramin era alguém muito comprometido com a causa dos pobres desde que entrou na congregação em 1972, um rebelde, como o definiu Giovanni Munari, um de seus colegas desde o início de sua vida religiosa, o atual Superior dos Missionários Combonianos na Itália. Suas palavras foram proferidas em um dos eventos organizados pela Amazônia Casa Comum, durante a celebração da Assembléia Sinodal, “Pe. Ezequiel Ramin: Igreja que dá vida pela Amazônia”.

Os irmãos de Ezequiel, pessoas de fé, inculcados por seus pais, agricultores da região de Pádua, também estiveram presentes neste evento. Essa relação com a terra foi algo que marcou a vida do missionário comboniano e seu trabalho ao lado dos pequenos agricultores. O melhor exemplo da fé da família foi dado pelo pai de Ezequiel Ramin que, ao receber o corpo de seu filho no aeroporto, disse “já perdoamos, porque em nossa família não há palavras de ódio ou vingança”, algo que foi retomado por seus filhos, porque, como disse Antonio Ramin em outubro, “como família perdoamos aqueles que mataram Ezequiel, como família dizemos que ele não é mais nosso, ele pertence à Igreja”, palavras que só podem vir de um coração cheio de fé.

A figura dos mártires teve um papel fundamental no desenvolvimento da Assembléia Sinodal, como recorda Dario Bossi, um dos padres sinodais, “na abertura do Sínodo da Amazônia, a imagem de Ezequiel misturada com o Papa Francisco, com as pessoas que tinham construído toda a caminhada do Sínodo, padres, religiosas, leigos e leigas que abriam a Assembleia Sinodal, atrás dos rostos dos mártires da Amazônia”. Como ícones que nos lembram o significado de suas vidas, “a imagem dele e de muitos outros mártires fico lá, aos pés do Papa Francisco, na assembleia, enquanto nós debatíamos e construíamos o processo sinodal”, disse o provincial dos Missionários Combonianos no Brasil.

Dessa assembléia, Dário Bossi lembra as palavras de Gregorio Díaz Mirabal, coordenador da COICA, a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica, que disse que “eu não consigo falar com essas pessoas que nos olham, é forte demais para mim, me faz pensar bastante nas pessoas das minhas comunidades, que tombaram por defenderem suas terras”. O padre sinodal, para quem “é essencial vincular a figura do padre Ezequiel ao Sínodo da Amazônia, porque o Sínodo foi um kairós, um momento histórico na caminhada de Deus e da Igreja na Amazônia”, afirma que “a participação dos seguidores de Jesus em sua paixão, morte e ressurreição gloriosa, acompanhou a Igreja, especialmente nos momentos e lugares em que, por causa do Evangelho, ela viveu a favor da ecologia integral na Amazônia”.

O Padre Ezequiel Ramin “Era consciente dos riscos que corria pelo seu posicionamento, até o ponto de em uma homilia declarar, se minha vida pertence a vocês, então também pertencerá minha morte”, como lembra Flávio Schmidt. De fato, o jovem missionário comboniano “estava sempre disposto a servir, quando escutava o relato de alguém que estava sofrendo, oferecia como resposta um abraço”, lembra o coordenador dos Leigos Missionários Combonianos no Brasil. Entre as palavras do Padre Ezequiel estão aquelas em que ele disse que “estou feliz quando veio alguém sorrir, quando posso ajuda-lo, quando recebo Cristo, quando as vezes esqueço de mim mesmo pelos outros, quando ocupo bem o dia, estou feliz quando eu vivo em plenitude”, algo que se fez presente no pouco mais de um ano em que ele foi missionário no Brasil.

O martírio de alguém que era visto como amigo dos camponeses, dos mais pobres, dos indígenas, fez com que “celebração de sua missa de despedida, um indígena declarou que sofreram como se tiveram perdido um parente”, lembra Flávio. Para o Papa João Paulo II, o jovem missionário italiano foi visto como uma testemunha da caridade de Cristo. Também, no Sínodo para a Amazônia, o Papa Francisco trouxe a figura do Padre Ezequiel como testemunha da luta pelas causas dos povos amazônicos, luta com a qual sempre se comprometeu e que continua tão atual hoje, em uma Amazônia cada vez mais ameaçada de ser depredada por grandes projetos com o olhar cego, até mesmo o apoio explícito, dos governos.

Neste momento em que estamos celebrando o 35º aniversário do martírio do Pe. Ezequiel Ramin, o provincial dos Missionários Combonianos no Brasil lembra o que o Sínodo para a Amazônia queria destacar, a necessidade de “escutar o grito da Terra e o grito dos pobres, um grito entrelaçado àquele das vítimas”. Entre eles Dário Bossi lembra Cleusa, Dorothy, Alejandro Labaka e Inés, Zé Claudio e Maria do Espírito Santo, nos quais descobre “a voz silenciosa e a construção teimosa da vida desde baixo, a vida das comunidades”.

Padre Bossi ressalta que “não podemos disociar o aniversário da morte de Ezequiel deste momento trágico de memória das tantas vítimas da COVID-19, especialmente as vítimas indígenas e das comunidades ameaçadas”. Muitos morreram como vítimas da pandemia na Amazônia, 18.939 de acordo com os últimos dados coletados pela REPAM, incluindo 1.104 indígenas. Dário Bossi faz memória de ” Dionito Macuxi, de Albino Andrade, e vovó Bernaldina Macuxi, de Paulino Paiakán Kayapó, de Paurini Assuaré e sua esposa, de Lourenço Diamantino Kaingang, e também do nosso companheiro Zé Aparecido, que amava Ezequiel e cantou a vida dele”.

Mas também é hora de olhar para o futuro, para fazê-lo a partir do testemunho de vida de Ezequiel Ramin. Portanto, celebrar sua memória hoje implica, segundo o provincial dos Missionários Combonianos no Brasil, “pelo menos, quatro compromissos: primeiro, solidarizar-se com todos os povos indígenas, dizer basta ao homicídio, que se dá por uma deliberada omissão de socorro e por uma falta de obras de prevenção. Segundo, defender de maneira intransigente a Amazônia, que nunca como hoje está sendo ameaçada e se encontra em perigo, a beira do ponto de não retorno, e nisso fazer um apelo à Igreja universal. Terceiro, renovar o compromisso do Sínodo, novos caminhos para a Igreja e uma ecologia integral, terra, teto e trabalho para todos. Quarto, animar o protagonismo da Igreja amazônica, a inculturação do Evangelho, a força das comunidades eclesiais de base, a formação de leigos e leigas”.

Tudo isso mostra que “Padre Ezequiel vive hoje, mais do que nunca, na Amazônia e na memória das comunidades cristãs”, enfatiza Dário Bossi. Suas palavras são reforçadas por Flávio Schmidt, que insiste que “seu exemplo e testemunho nos sirva de inspiração para colocar em prática também aquilo que a Igreja vem no pedindo nesses tempos tão difíceis, sobretudo com relação à questão amazônica”.

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