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Colapso. Fim do mundo? “E agora, José?”
Por Gilvander Moreira

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Em plena quaresma, tempo de 40 dias para conversão pessoal, social, ecológica, social, política, econômica e religiosa, de 2020, estamos em casa, “forçadamente”, em quarentena, na esperança de impedirmos o avanço avassalador do coronavírus, que já matou mais de 10 mil pessoas e infectou outras 250 mil em vários países com a doença COVID-19. Se não for interrompido o contágio comunitário, esse vírus poderá matar milhões de seres humanos no Brasil e em muitos países. Uma crise sem precedentes na história da humanidade chegou com o colapso das condições de vida. Uma guerra biológica – uso de agentes biológicos como arma – em todo o mundo? O medo da morte toma conta de muitas pessoas. Outras, cegadas e em atitude estúpida, ignoram a guerra que já está em território brasileiro, com esse inimigo invisível, mas avassalador: o coronavírus. No Brasil, um país desgovernado por fascistas e estúpidos, o “governo” federal, idolatrando a manutenção de lucros e acumulação de capital de grandes empresas, “para tentar salvar a economia de depressão”, está postergando tomar medidas urgentes que poderiam impedir milhares de mortes. Atitude infame! Futuramente, as autoridades que deveriam tomar decisões políticas para salvar vidas e não tomam por mesquinhos interesses, serão julgadas por crimes de lesa-pátria.

Tudo nos leva a pensar que entrou em colapso o modelo de sociedade capitalista, individualista, consumista, competidora, egocêntrica, narcisista e devastadora da natureza. No mundo, atualmente, estão em curso 378 guerras contra a vida humana e a natureza. Por meio do agronegócio com monoculturas e grandes mineradoras, o mercado idolatrado segue fazendo guerra contra a natureza (a mãe terra, a irmã água, os biomas, toda a biodiversidade), arrasando o meio ambiente. Como dragão do Apocalipse, as grandes mineradoras seguem apunhalando as entranhas da mãe Terra. Chegou o fim do mundo capitalista neoliberal e neocolonial. É momento de pensar profundamente, refletir e converter radicalmente nosso modo de viver, de conviver e de nos relacionar com a mãe Terra, com a irmã água e todos os seres vivos da natureza. A natureza está gritando: “Respeite-me! Se vocês que se dizem humanos continuarem violentando e devastando todas as condições de vida no Planeta Terra, saibam que a espécie humana será extinta assim como foram exterminados os dinossauros e outros”. Diante de massacre de galileus, ordenado pelo governador Pilatos e diante de uma tragédia criminosa (queda da torre de Soloé), Jesus Cristo analisou a situação gravíssima e alertou: “Se vocês não se converterem, vão morrer todos” (Lucas 13,3.5). Por meio da parábola da figueira estéril “há três anos” (Lucas 13,6-9), Jesus propôs seguirmos a sabedoria do camponês: “Senhor, vou cavar em volta da figueira e adubar. Quem sabe, no futuro ela dará fruto!” (Lucas 13,8-9). Cuidar da mãe terra, nossa mãe, eis o caminho para voltarmos a viver e conviver com dignidade.

As cidades grandes se tornaram venenosas com excesso de poluição de vários tipos. O médico italiano Antônio Lupo diz que o coronavírus, na Itália, está tendo maior contágio nas cidades grandes onde a poluição é maior. Diz ele: “Na poeira invisível da poluição o vírus segue contagiando as pessoas”. Continuar vivendo nas grandes cidades será continuar no corredor da morte. O povo deve viver espalhado por todo o território e não amontoado nas grandes cidades. As cidades devem ser pequenas, onde os valores comunitários prevalecem e não o individualismo e a competição das grandes cidades.

A ambientalista antiglobalização Vandana Shiva pondera: “A natureza encolhe à medida que o capital cresce. O crescimento do mercado não pode resolver a própria crise que ele cria. Ou teremos um futuro em que as mulheres liderem o caminho para fazer as pazes com a Terra ou não teremos um futuro humano“. Ou seja, não basta pensar que após superarmos a contaminação comunitária do coronavírus, oxalá, nos próximos meses e com um baixo número de mortos, poderemos, depois, voltar a viver do mesmo jeito e fazer o mesmo que estávamos fazendo até agora. Insistir em “mais do mesmo” será de fato galopar rumo à extinção da espécie humana sobre o Planeta Terra que, sem nós, poderá pouco a pouco se revitalizar e cuidar das outras espécies que sobreviverem ao holocausto que o sistema capitalista está impondo à espécie humana.

Obcecados por acumular capital, sob a forma de dízimo, esmola e ofertas, muitos depravados pastores e padres promovem o divórcio da fé cristã com a realidade sociopolítica e ambiental, dão ênfase exclusivamente na espiritualização da mensagem do Evangelho de Jesus Cristo, teimando, assim, em amputar a dimensão social da mensagem bíblica. Desse modo, cultivam analfabetismo político que contribui para eleger pessoas que praticam a necropolítica, a exemplo daqueles que, como o atual presidente da República, defende e justifica a tortura, a violência e a morte. E, pior, induzem o povo a ter uma visão idolátrica de Deus que leva as pessoas a ‘só orar’, ‘só louvar’ e a pensar de forma resignada que “só Deus pode nos livrar dessa tragédia”. Ignoram a orientação do apóstolo Paulo em sua Primeira Carta aos Coríntios: “sejamos cooperadores de Deus” (1Co 3,9). O Deus da vida só tem o poder do amor. Quem ama deixa a pessoa amada livre. Deus propõe, mas não se impõe. Jamais Deus – mistério de amor – vai agir de forma mágica atropelando a natureza e a condição humana. O Deus da vida age, sim, por meio de nós, de forma encarnada e comprometida com os desafios da história. A Bíblia nos apresenta várias situações em que o povo de Deus, conhecendo o perigo que se aproximava, agiu, guiado pela luz divina. Avisado sobre a iminência de um dilúvio, Noé construiu a arca e acolheu nela um casal de todas as espécies. Assim, Noé se tornou um dos pais da ecologia integral. Diante dos sinais de que uma grave seca se instalaria em toda a região do Egito, José armazenou alimentos. Sabendo do Decreto do rei Herodes, que determinava matar toda criança de dois anos para baixo, José e Maria, pai e mãe de Jesus, bem que poderiam ter ficado no mesmo lugar, mas fugiram para o Egito, para salvar o menino Jesus da morte.

No 4º domingo da quaresma, dia 22/03/2020, o Evangelho lido nas missas não presenciais foi João 9,1-41 – sexto sinal -, que narra Jesus curando um cego “de nascença”. Cegado e acostumado ao sistema, parte do povo não reconhecia o jovem que passou a enxergar, só o via enquanto pedinte (Cf. João 9,8). Após ter sido curado por Jesus, o cego foi interrogado pelos fariseus e, de cabeça erguida, por falar a verdade reconhecendo Jesus como profeta, foi perseguido e expulso da sinagoga pelos chefes religiosos (Cf. João 9,13-17.24-34). Ao saber que o cego que passou a enxergar tinha sido expulso, Jesus foi ao encontro dele e viu que ele estava firme para se tornar discípulo do mestre Galileu. No final da narrativa, o Evangelho termina afirmando que cego mesmo era as lideranças do poder religioso e quem passa a enxergar são as pessoas excluídas por um sistema de morte, as que seguem o ensinamento de Jesus Cristo. Por curar, Jesus também foi perseguido até a condenação a pena de morte, mas ressuscitou e está vivo em nosso meio. Em torno dos anos 80 do I século, era comum à Comunidade Judaica o poder de, na sinagoga, interrogar, julgar e até expulsar seus membros (João 9,13.18.22.34). A Sinagoga tinha uma assistência social que ajudava os cegos, as viúvas e os órfãos, mas com a condição que fossem “judeus”. A sinagoga definia quem era “justo” e quem era “pecador”. Os judeus, após a destruição de Jerusalém no ano 70 do I século, chegaram a um acordo com os romanos imperialistas: o judeu que se filiasse a uma sinagoga e nela pagasse o imposto teria seus direitos reconhecidos pelo Império Romano. Quem não se adequasse ao sistema religioso da época era excluído. O pai e a mãe do cego curado por Jesus também foram investigados pelos chefes do poder religioso (Cf. João 9,18-230). Se os pais do cego testemunhassem confirmando que Jesus havia curado a cegueira do filho, eles seriam expulsos da sinagoga e excluídos. Por isso, não puderam dizer a verdade para as autoridades.

Para Jesus Cristo a cegueira “dá oportunidade para a ação de Deus” (Cf. João 9,3). “Temos que realizar as obras de Deus já, enquanto é dia, pois a noite está chegando e ninguém mais poderá trabalhar” (João 9,4), alerta Jesus. Por que fazer ver – gerar conhecimento que liberta – incomoda tanto? Por que o povo é condenado a sobreviver cegado? Quem é verdadeiramente cego: quem assume o caminho da fé e da vida, mesmo fora dos esquemas estabelecidos ou quem prefere a comodidade das instituições e a garantia do poder? Um cego que passa a enxergar estremece o status quo, subverte muita coisa. Ver/conhecer a partir das vítimas é algo revolucionário. Quem passa a ver não precisa mais de esmolas e adquire autonomia. O pior cego não é apenas o que não quer ver, mas aquele que impede os outros de ver, isto é, o pior cego é o que coloca uma venda nos olhos dos outros. Na sociedade capitalista, os arautos do desenvolvimento e do progresso econômico ilimitado, via ideologia dominante e fake news, colocam uma venda nos olhos do povo. Quem, de cabeça erguida, questiona esse sistema de morte que está levando ao Apocalipse da espécie humana, é expulso e excluído do sistema.

No livro Ensaio sobre a cegueira, de 1995, José Saramago, em trezentas páginas, convida-nos a experimentar durante a leitura, sob intenso sofrimento e angústia, que não somos bons e que dói muito reconhecer que não somos bons e que estamos sobrevivendo como cegos. “Estou cego, estou cego, repetia com desespero enquanto o ajudavam a sair do carro, e as lágrimas, rompendo, tornaram mais brilhantes os olhos que ele dizia estarem mortos”. Um motorista parado no semáforo, subitamente descobre que está cego. Assim Saramago inicia o romance da história de uma epidemia de cegueira que atingiu todas as pessoas em uma cidade. A convivência social se tornou um caos, com pessoas isoladas e abandonadas à própria sorte. Na cidade em caos, destruição humana campeia. Todos cegos – cegados, melhor dizendo – se batem pela sobrevivência imediata. No desespero, os traços de humanidade são aniquilados.

Já em outra dimensão, José Saramago não está mais entre nós para ver o colapso que ocorre agora no mundo com o coronavírus matando milhares de pessoas e impondo “toque de recolher” em todos os países. Na Itália, país 27 vezes menor que o Brasil, sem cidade com mais de quatro milhões de habitantes, está morrendo mais gente também porque a privatização do sistema de saúde levou à diminuição e ao sucateamento do sistema de saúde do país.

Enfim, o colapso que a pandemia de coronavírus causou no mundo demonstra inequivocamente que se não o fim de todos os mundos chegou, pelo menos o fim do mundo moderno capitalista neocolonial chegou para ficar. Não será mais possível insistir em “mais do mesmo”. Com o poeta Drumond, perguntamos “E agora, José?” Melhor passar a palavra aos povos originários (indígenas) e aos povos tradicionais (quilombolas, geraizeiros, vazanteiros …) e termos a humildade de aprender com eles a reinventar o jeito de viver e conviver.

Em tempo: para o povo brasileiro não morrer de fome e nem ser forçado a saquear todos os armazéns em busca de comida, o governo federal precisa garantir já renda básica de emergência mensal no valor mínimo de R$300 reais por pessoa para as 77 milhões de pessoas mais pobres do Brasil – aquelas que têm renda familiar inferior a 3 salários mínimos[1].

24/03/2020: 40º aniversário do martírio de Dom Oscar Romero, assassinado dia 24/04/1980, enquanto celebrava uma missa. Foi metralhado pela ditadura militar-civil-empresarial em El Salvador, imposta a mando do Império dos Estados Unidos.

Por Gilvander Moreira[1]

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Palavra Ética TVC/BH: Davi Kapenawa, xamã do povo yanomami. Igrejas X Mineração. 02/3/2019

https://www.youtube.com/watch?v=EZTkMrQl170

2 – Mirian, da Bíblia, 12 anos, está na Ocupação Vitória, em BH. C/ Mirian e Davi, venceremos. 23/05/15

https://www.youtube.com/watch?v=sheQld878eE

3 – Famílias do Acampamento Zequinha, Bicas/MG, vivem da agroecologia. Despejo, NÃO! Vídeo 3 – 26/1/2020

https://www.youtube.com/watch?v=sFe1-PRe4Ek

4 – Palavra Ética na TVC/BH: Agroecologia na XXI Romaria em MG e Quilombo do Baú Araçuaí. 29/9/2018

https://www.youtube.com/watch?v=vYIgPzkKVkc

5 – Do Agrotóxico para a Agroecologia/1ª Pré-Romaria da XXI Romaria/Águas e Terra/MG/Arcos/23/6/2018

https://www.youtube.com/watch?v=hG6P0PuNeT4

6 – Assentamento Pastorinhas – Agroecologia – www.assentamentopastorinhas.blogspot.com – 16/04/2012

https://www.youtube.com/watch?v=oSL46NauZk8

[1] Gratidão a Carmem Imaculada Brito e a Nádia Aparecida Sene Oliveira que fizeram a revisão deste texto.

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