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Frei Paulo Xavier Ribeiro: “a religiosidade popular recupera aquilo que o povo tem de mais profundo na sua alma”

Por Luis Miguel Modino

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

A religiosidade popular é um elemento fundamental na vida da Igreja católica na Amazônia, um fenômeno que não aparece só no interior, mas também nas cidades. Essa dimensão pode contribuir para os novos caminhos da Igreja na Amazônia, como recolhe o Documento Preparatório do Sínodo.

Frei Paulo Xavier Ribeiro, é pároco da Paróquia de São Sebastião de Manaus, que está celebrando seu novenário nesses dias, uma das festas que mais devotos congrega na capital manauara. O tema da festa de 2019 é o Sínodo para a Amazônia, uma reflexão de suma importância, segundo o frei capuchinho. Nascido em Amaturá, na beira do Rio Solimões, o religioso conhece a vida dos povos da Amazônia e a importância da religiosidade popular para esses povos, pois sempre trabalhou pastoralmente na região.

O sínodo para a Amazônia deve levar a mudar atitudes concretas na vida das pessoas e também tem que levar a Igreja a refletir no cuidado da criação, um chamado que deve ser assumido sem falta como franciscanos, pois “se a gente não consegue assumir isso que faz parte da nossa espiritualidade, da nossa vida como franciscanos, a gente está se omitindo”.

Qual é a importância da religiosidade popular para os povos da Amazônia?

É de suma importância, até porque aqui na Amazônia, eu falo desde a experiência, sou do interior, sou do Alto Solimões, nasci na beira do rio, conjugando terra, rio, pescaria, água. A religiosidade popular nasce justamente dessa conjugação de todo esse ambiente, vivido por todos nós daqui da Amazônia. Esse desejo de poder encontrar-se com o transcendental, o sobrenatural, que se dá nas várias manifestações da vida do povo.

Uma das manifestações são as festas dos padroeiros, que reúne as famílias. A festa do padroeiro é uma ocasião para se programar no interior, de se encontrar nos festejos, na vida que envolve toda vizinhança, da cidade, e tudo mais. É importante porque traz a alegria do encontro, traz a motivação de que eu vou lá porque eu me comprometi a partir do meu testemunho de fé. Então, é uma questão da honestidade, de você trabalhar o ano inteiro para na festa do padroeiro poder se encontrar com as outras pessoas e poder legitimar seu compromisso.

A importância disso, desse legado de união, de vida, de vitalidade, de entusiasmo, de poder encontrar outras pessoas, outras famílias e trabalhar nesse projeto que se tem anualmente, de revigorar as suas forças, a sua fé, o seu compromisso com a vida. A importância dessa religiosidade na vida do povo é fundamental, é uma recuperação mesmo daquilo que tem de mais profundo na sua alma, no seu ser, que é exatamente o transcendental, aquilo que liga você ao sobrenatural, e passa exatamente pelas pessoas, pelo padroeiro.

Nós estamos falando de São Sebastião, estamos no novenário. Então, as pessoas, aqui mesmo na cidade, vivendo essa festa lembram do seu interior, lá da sua cidade, lá da comunidade, lembram das famílias, lembram dos fogos, lembram das frases que se falavam, das comidas típicas, dos biscoitos que partilhavam. Então, esse é um sentido muito bonito da vivência dessa religiosidade aqui na Amazônia.

Neste ano, está acontecendo o processo do Sínodo para a Amazônia e a paróquia quis trazer como tema de reflexão do novenário, o Sínodo da Amazônia, novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. Qual é importância que o Sínodo pode ter na vivência dessa religiosidade popular?

Nós vivemos aqui na cidade, uma metrópole, no centro da cidade de Manaus, e para nós foi decisivo isso, pois com o conselho de pastoral, com os vários grupos e movimentos, nós propusemos o que seria ocasião para a gente discutir, qual será o tema de nosso novenário, que é que nos motiva a pensar. Todos foram unânimes a dizer, nós estamos toda a Igreja envolvida, se movimentando, temos que buscar caminhos, e um caminho é buscar as brechas, as curvas, para que a gente possa, pelo menos, testemunhar nossa fé.

A ocasião para a gente puder assumir isso, foi uma escolha de todas as pastorais, de todos os movimentos, e a necessidade de pensar isso coletivamente. Os pequenos gestos que a gente pode fazer, a pequena brecha que a gente encontra para poder realizar essas discussões, essas reflexões, é uma oportunidade. Então, aproveitamos os festejos para iniciar o ano já nesse projeto de discussão, de reflexão e de propostas concretas para o Sínodo.

Inclusive uma das propostas é a questão do lixo. Em nossos festejos, em nossas paróquias, se produz muito lixo, descartável, plástico, latas, e tudo mais. De que maneira a gente pode fazer com que esse consumo seja amenizado, ou banido, de nossas festas, e de que maneira a gente pode, já que a gente está dando passos em relação a isso, como encaminhar essas situações dos plásticos, dos papeis, das latas que a gente usa.

Aí tem uma equipe que está discutindo com várias organizações, tipo Recicla Manaus, que é uma associação de catadores de lixo que a gente pode aproveitar dessas organizações para ir colocando no coração, na vivência de nossos paroquianos, dos devotos, a questão do cuidado com a Mãe Terra, com a água, que ela é para nós esse sinal de Deus, e uma forma da gente puder estar presente na vida das pessoas é cuidando disso. Pequenos gestos que a gente pode fazer, podem ser grandes transformações que a gente pode realizar na vida das pessoas, começando pela pastoral, pela Igreja, pelo novenário.

O senhor pensa que aquele que vem para a cidade, inclusive aquele que nasceu no interior, esquece um pouco essa dimensão ecológica e se deixa envolver pela cultura do descartável, da geração de lixo? Por que é importante refletir nesse sentido e promover ações concretas, aproveitando as festas dos padroeiros, aproveitando o Sínodo para a Amazônia?

Quando se chega aqui em Manaus, na cidade, as pessoas que transitam nesses rios, têm outros usos, têm outros costumes, e aí fica mais na praticidade das pessoas de não usar aquilo que nós usávamos no interior para pegar água, a gente usava a cumbuca, feita da cuia, usava a experiência mesmo de carregar, ou tomar água na cuia pequena. Enfim, eram situações que as comunidades usavam. Na cidade, você fica em uma dependência de usar aquilo que a sociedade toda começou a fazer.

A praticidade, nem sempre pode ser aquilo que faz bem para a natureza. Nós enfrentamos muitas dificuldades aqui para tirar o descartável. Eu cheguei aqui há dois anos, era uma leva de copos descartáveis, que tive que dizer, quem quiser tomar água coloque sua mão na torneira, ou traga sua garrafinha, porque tem que ser algumas coisas concretas, para a gente puder mudar a situação, porque se você ficar alimentando um tipo de realidade, você não vai conseguir fazer as transformações.

As vezes tem que usar um corte muito duro em relação ao uso desses termos. É necessário a gente poder resgatar aquilo que era os costumes das comunidades, mesmo lavar os copos descartáveis, os pratos descartáveis, para fazer uso outras vezes. Nem sempre a gente consegue legitimar isso na vida das pessoas, porque elas acham que é mais trabalho, é isso, é aquilo. E aí as gerações vão pegando esse mal costume de não zelar, de não cuidar da vida.

Diante das ameaças que a Amazônia vem sofrendo e daqueles que se vislumbram de cara ao futuro, até que ponto é importante uma atitude profética que leve a refletir sobre essas problemáticas amazônicas, como sugere o Sínodo?

A Igreja não pode se omitir desse tipo de reflexão, ela faz parte de todo esse complexo que envolve as pessoas. Eu vejo que é uma tentativa de ir trabalhando esses aspectos e transitando em várias situações. Por exemplo, as várias entidades e órgãos que trabalham em relação a isso, em ter responsabilidade no cuidado com o saneamento básico, com a educação para o ambiente e tudo mais. A gente tem que começar a transitar em esses órgãos, que tem também o poder de decisão, para aquilo que a gente vê, que esse cuidado é importante para nós.

A nossa posição aqui como Igreja e como frades que estão aqui, que são franciscanos, filhos de São Francisco, é uma grande ofensa para nós, ou até omissão, se a gente não se inserir dentro desse movimento todo e estar presente. O Cântico das Criaturas de Francisco louva, bendiz pela água, pelo vento, pelo irmão Sol, pela irmã Lua, pela Mãe Terra. Se a gente não consegue assumir isso que faz parte da nossa espiritualidade, da nossa vida como franciscanos, a gente está se omitindo. Então, a gente tem que continuar firme em esse propósito de ir fazendo nascer essa consciência e testemunhando a partir de nós mesmos. Nós frades temos que começar, é a nossa missão, é nossa vida, é nossa identidade. E aí, como fazer nossa identidade gerar pequenos gestos da nossa fraternidade, onde nós estamos, como exercer esse compromisso com a vida.

O senhor é franciscano, é amazonense, qual é o sentimento que gera essa insistência do Papa Francisco em cuidar da Casa Comum, e agora convocar o Sínodo para a Amazônia?

Um primeiro sentimento é aquele da angustia. Eu vivi toda a minha juventude no interior, em Amaturá, nós vivíamos na beira do rio e para a gente tomar o banho descia no rio e antes de entrar na água, nós nos benzíamos, fazíamos o sinal da Cruz como aquilo que era de mais sagrado que podia ter ali, a beleza da gente poder entrar na água, um sinal de Deus, na convivência com tudo aquele ambiente.

Isso, para mim, gera um sentimento de angustia porque hoje a gente perdeu esse sentido aqui na cidade, você não contempla aquilo que é a beleza do Criador. Todos os dias, nós nos banhamos, mas a gente não se lembra mais de acolher, e bendizer, e agradecer ao Senhor pela água que está presente na nossa vida.

Outro sentimento é aquele da gente acolher a dimensão que essa realidade da criação nos faz. O Papa nos convoca para isso, e é um alerta para nós, que vemos esse sentimento de que aquilo que nós não podemos mudar, nós pelo menos, vamos procurar conviver com o diferente, mas não perdendo jamais a nossa identidade. E isso é fundamental para poder se exercitar naquilo que Jesus disse, o joio e o trigo, eles caminham juntos, crescem, e a gente pode identificar no final a situação, mas não perder jamais a identidade para a gente tocar enfrente aquilo que acreditamos, aquilo que é a nossa vocação.

Falo exatamente como um amazonense daqui da região, e que nós não podemos jamais permitir que a nossa identidade como amazonenses, mais ainda agora nessa opção franciscana, possa fazer com que nós, não valorizemos essa beleza que é a nossa vocação aqui na Amazônia e viver a vida franciscana aqui.

Como ordem dos Capuchinhos, especialmente como Província da Amazônia, até que ponto o Sínodo está influenciando na vida do dia-a-dia da sua ordem, na vida das comunidades?

Tem influenciado em eixos muito concretos. A primeira dimensão que tem ajudado a gente a refletir é a nossa vocação específica como franciscanos aqui na Amazônia. Depois a dimensão da espiritualidade, a Amazônia nos provoca a espiritualidade de viver a fraternidade, essa fraternidade cósmica, a fraternidade universal que Francisco propunha e evidencia na nossa vida. Depois, esse aspecto da gente puder ir trabalhando isso nas vocações que estão vindo.

Se a pessoa que está querendo ser frade consegue já fazer esses passos, é fundamental, e aí já é um critério para a gente receber pessoas assim, porque se a pessoa vem para ser frade e não consegue enxergar a beleza da natureza, a espiritualidade que esse espaço favorece, aí já é um critério para dizer, procure outro local, outra forma de vida, porque essa forma de vida aqui se identifica por aí. Isso tem mexido muito com a nossa ordem e estamos trabalhando nesse sentido.

O senhor pensa que os jovens de hoje, mais influenciados pela tecnologia, pela cultura urbana, ainda tem esse sentimento de ligação com a natureza que sempre pediu São Francisco, e que hoje outro Francisco está insistindo de novo nessa dimensão?

Temos muita dificuldades de ver com os jovens que vem, querendo ser frades, para essa abertura, ou esse olhar profundo com a natureza, com a ecologia. Tem muita dificuldade, até porque os jovens da cidade estão mais relacionados com essas novas tecnologias, novos areópagos de manifestação e vamos nesse bojo da sociedade, que é o frenesi do movimento. O jovem fica fascinado pelas artes, pelo movimento das tecnologias, pela velocidade das tecnologias.

O grande dever nosso é não deixar seu coração envolvido nessa dimensão, claro pode usar isso a serviço daquilo que você acredita, aquilo que dá motivação para você viver. Acho que a motivação do Papa é essa, não perder essa dimensão de que a vida aqui na Amazônia pode nos levar ao respeito ao Criador, pode nos levar à convivência com os diferentes povos, de culturas, de religiões, de pessoas, de rios, de água. Essa beleza que possa nos ajudar na diversidade a encontrar o caminho para a gente legitimar a nossa vida, a nossa missão.

Os jovens, alguns têm se questionado, inclusive uma forma da gente poder fazer dar continuidade à formação é ir para as comunidades no interior, na beira do rio, e tudo mais, porque alguns nasceram na cidade. Então, não conhecem a vida do povo simples, não conhecem as árvores, não conhecem o caminho, não conhecem o remo, a canoa e tudo mais, então é necessário fazer esse processo.

Como fazer realidade esse trabalho de presença eclesial na Amazônia?

A gente quer dizer que a parceria, o tecer redes é fundamental, nós não somos os únicos nisso, então todo o processo é esse desafio, essa arte de tecer relações. Você que sabe fazer aquilo, outro que se aprofunda naquela dimensão, outro que conhece o rio, outro que sabe remar, outro que saber fazer, reconhecer, o movimento da terra, e tudo mais.

Essa parceria que faz com que a gente possa se unir nesse grande caminho de busca, de sinalizações para viver esse princípio maior da comunhão da Igreja, da unidade da Igreja, e colocar no seu coração, na sua vida, essa ecologia integral que contempla todo o ser, toda a diversidade, toda a dimensão espiritual que nos liga ao Criador.

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